Por Rogério Tadeu Romano*
Trago o relato do Estadão, em reportagem, no dia 20.11.24:
“A Polícia Federal prendeu ontem um general da reserva, ex-integrante do governo Jair Bolsonaro (PL), outros três oficiais militares e um policial federal suspeitos de participação em uma trama para o assassinato do então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e do vice, Geraldo Alckmin, além do sequestro e execução do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. A Operação Contragolpe é um desdobramento do inquérito que investiga uma “organização criminosa” suspeita de atuar em tentativa de golpe de Estado e abolição do estado democrático de direito após o resultado da eleição presidencial de 2022 – quando Lula venceu o ex-presidente no segundo turno da disputa por uma margem pequena de votos.
A nova investida dos agentes federais amplia as suspeitas sobre Bolsonaro e seu entorno, descrevendo atuações do ex-ministro da Defesa e da Casa Civil, general Braga Netto, e, principalmente, do general reformado Mário Fernandes, ex-secretário executivo da Secretaria-Geral da Presidência – um dos presos ontem, apontado como o autor do arquivo que detalhava a possibilidade de envenenar Lula, matar Alckmin e explodir Moraes. No relatório encaminhado ao Supremo, a PF conclui que Bolsonaro, em dezembro de 2022, “estava naquele momento empenhado para consumação do golpe de Estado, tentando obter o apoio das Forças Armadas”.
Materiais apreendidos na Operação Tempus Veritatis, aberta em fevereiro, orientaram a operação policial que prendeu Fernandes e três “kids pretos”: o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima, o major Rafael Martins de Oliveira e o major de Infantaria Rodrigo Bezerra de Azevedo, que servia no Comando de Operações Especiais. Foi preso também o policial federal Wladimir Matos Soares, que atuou na segurança de Lula.
Lucas Garellus, capitão do Exército que serviu no 1.º Batalhão de Forças Especiais em 2017, foi alvo de buscas pela suspeita de ter auxiliado em ação de monitoramento de Moraes.
Kids pretos é como são chamados os militares de alta performance em ações de grande impacto. A investigação atribui a Braga Netto – que foi candidato a vice na chapa de Bolsonaro à reeleição – envolvimento direto com a ação de kids pretos mobilizados para a “Operação Punhal Verde e Amarelo”, plano apreendido com Fernandes e que detalhava a estratégia para os assassinatos.”
Pois bem.
O que ali se presencia é a execução da tentativa de um golpe de Estado ou seriam “apenas” atos preparatórios desse crime? como indagou Nicolau da Rocha Cavalcanti (Bolsonaro cometeu crime de tentar um golpe?, in Estadão, em 14.2.24).
Nicolau da Rocha Cavalcanti, que a tipificação do “tentar depor” foi precisamente o modo encontrado pelo legislador de assegurar que o Estado tenha meios de defender a democracia antes do golpe.
Ali disse Nicolau da Rocha Cavalcanti, naquela manifestação:
“Afirmar que todas as ações prévias ao golpe de Estado propriamente dito (a deposição do governo) seriam meros atos preparatórios é minar a eficácia protetiva do art. 359M, além de representar um olhar simplista sobre o que é um golpe – sempre um processo complexo de ações, e não um único ato numa hora determinada. Tem-se aqui mais um motivo para a não divulgação seletiva de elementos probatórios: é preciso compreender o todo.
O legislador foi prudente. Para não instituir um tipo penal muito amplo, violando o princípio da legalidade, determinou que, para haver crime, a tentativa de deposição deve se dar “por meio de violência ou grave ameaça”. Entendo que um presidente da República, reunido com seus ministros de Estado, atuando para que o resultado da eleição não fosse respeitado constitui, sim, uma grave ameaça. Isso é muito diferente do que alguém escrever, num grupo de WhatsApp, “não podemos deixar o Lula assumir”.
O Código Penal prevê não apenas os crimes e as respectivas penas. Na sua Parte Geral, estabelece como esses crimes devem ser aplicados – e essa aplicação normativa é o que distingue, entre outras coisas, a sentença judicial da mera opinião. Por hipótese, em muitos casos do 8 de Janeiro talvez não haja o preenchimento da tipicidade subjetiva, em especial acerca da compreensão de “governo legitimamente constituído”. Como se sabe, “o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo” (art. 20 do Código Penal). De toda forma, a situação é outra, por exemplo, quando se refere a alguém que, para assumir o cargo, jurou cumprir a Constituição e, mais tarde, sancionou a própria Lei n.º 14.197/2021.”
A tipificação do ‘tentar depor’ foi o modo de assegurar que o Estado tenha meios de defender a democracia antes do golpe.
Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: (Incluído pela Lei nº 14.197, de 2021) (Vigência)
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência. (Incluído pela Lei nº 14.197, de 2021)
O delito de tentativa golpe de Estado está localizado no Capítulo II da nova lei, chamado de “dos Crimes contra as Instituições Democráticas”. E o bem jurídico penal é o próprio Estado Democrático de Direito, o qual consta no preâmbulo da CF e nos artigos 1, caput, sendo o modelo, a forma institucional do Brasil.
Ademais, as normas constitucionais definem o sistema republicano, democrático e representativo no qual o voto é o meio pelo qual se ascende ao cargo político-eleitoral, não se admitindo a tomada violenta do poder.
Trata-se de crime formal, que exige o dolo como elemento do tipo. A ação pode vir por violência ou ameaça, que há de ser séria, objetivando, inclusive, restringir o exercício de um poderes da República, para o caso o Judiciário.
A ameaça deve ser realizável, verossímil, não fantástica ou impossível. O mal prometido, segundo forte corrente, entende que o mal deve ser futuro, mas até iminente, e não atual. Só a ameaça séria e idônea configura esse crime.
O crime é de perigo presumido.
O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, caracterizando o crime comum. O sujeito passivo é a sociedade e o Estado.
Quanto à tipicidade objetiva, trata-se de delito de forma livre de mera conduta. Incrimina-se a conduta de tentar depor governo legitimamente constituído, o que significa governo eleito democraticamente, conforme as regras constitucionais, e devidamente diplomado.
O delito somente ocorre se a tentativa de deposição utilizar violência ou grave ameaça, não se podendo confundir este delito com a renúncia ou impeachment daquele que foi eleito ou mesmo com cassação parcial ou total da chapa.
Nota-se que a violência deve ser empregada na tentativa de deposição para que o delito se caracterize.
A grave ameaça deve ser à pessoa (havendo interpretação de que pode ser contra as instituições), o que pode ocorrer por palavra, por escrito, gestos ou outro meio simbólico de causar mal grave e injusto.
O governo constituído que pode sofrer o golpe de Estado é municipal, estadual, distrital ou federal.
Consoante tipicidade subjetiva, incrimina-se a prática dolosa de usar violência ou grave ameaça para tentar depor um governo legitimamente constituído.
Este crime não admite forma tentada e se consuma com a tentativa de depor o governo legítimo mesmo que o governo se mantenha.
A pena, 4 a 12 anos e mais as penas das violências cometidas, como lesões corporais e outras práticas contra a pessoa, comporta regime fechado a depender o caso concreto. Admite-se prisão preventiva se houver requisitos e fundamentos do artigo 312 ( CPP) já que a hipótese no artigo 313, inciso I do CPP está presente. Não é cabível prisão temporária.
Não se admite a incidência de instrumentos de barganha como transação penal, suspensão condicional do processo ou acordo de não percepção penal. E a ação penal pública incondicionada, tramitando pelo rito ordinário.
Cometeu-se um crime contra a ordem democrática.
Lembre-se o artigo 359 – L do CP:
Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
Sobre o tema disse Fernando Augusto Fernandes (O terrorismo por omissão e o artigo 359 – L do Código Penal, in Consultor Jurídico, em 29.12.2002):
“O crime mais adequado, contudo, é o do artigo 359-L, incluído no Código Penal pela Lei nº 14.197/21, que descreve a conduta de “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”, com pena é de 4 a 8 anos,”além da pena correspondente à violência”. Apesar do artigo sobre violência política (artigo 359-P, do CP) ter também deixado de fora o fim político da conduta delituosa e optado por” razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, o crime de abolição violenta do Estado de Direito já traz a tentativa no próprio crime, sem limitação da atuação que naturalmente é política.
Trata-se de crime formal, que exige o dolo como elemento do tipo. A ação pode vir por violência ou ameaça, que há de ser séria, objetivando, inclusive, restringir o exercício de um dos poderes da República, para o caso o Judiciário.
A ameaça deve ser realizável, verossímil, não fantástica ou impossível. O mal prometido, segundo forte corrente, entende que o mal deve ser futuro, mas até iminente, e não atual. Só a ameaça séria e idônea configura esse crime.
O crime é de perigo presumido.
Fatalmente, tendo a Lei de Defesa do Estado Democrático substituído a Lei de Segurança Nacional, não pode ser esquecido que delitos perpetrados com motivação política são, portanto, crimes políticos.
O caso é gravíssimo.
Havia uma organização criminosa instalada com o propósito de dar um golpe de Estado.
A Lei 12.850 prevê tipo penal, no artigo 2º, um crime com relação a quem promova, constitua, financie ou integre pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa, incorrendo, nas mesmas penas, quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva a organização criminosa.
A pena in abstrato previsto é de reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos e multa, sem prejuízo de outras correspondentes.
Trata-se de crime de perigo abstrato, presumido pela norma que se contenta com a prática do fato e pressupõe ser ele perigoso.
Penso que é crime que envolve perigo coletivo, comum, uma vez que ficam expostos ao risco os interesses jurídicos de um número indeterminado de pessoas.
É crime contra a paz pública, independente daqueles que na societatis delinquentium vierem a ser praticados, desde que sejam punidos com penas máximas superiores a quatro anos ou revelem o caráter transnacional, havendo concurso material entre tal crime e os que vierem a ser praticados pela organização criminosa.
Não haverá bis in idem com relação a qualificação dos crimes de roubo com emprego de arma e de organização criminosa com a majorante prevista no artigo 2º, § 2º, da Lei 12.850.
Uma vez que não ocorre o bis in idem, sendo o agente punido pelo crime de organização criminosa, há que se qualificar o crime praticado por seus integrantes em concurso de agentes, como se vê do roubo (artigo 157, II, CP).
Exige-se o dolo específico, envolvendo o acordo de vontade, um verdadeiro vínculo associativo.
Penso que a associação criminosa deve envolver a prática de crimes dolosos, não culposos, ou contravenções com pena máxima superior a 4 (quatro) anos.
Assim como na quadrilha ou bando estamos diante de um crime permanente, onde os agentes são levados a delinquir indefinidamente, dentro de uma estruturação ordenada, com necessária divisão de tarefas, ainda que informalmente, mesmo que na prática de crime continuado ou ainda de habitualidade, como se vê no tráfico de mulheres, dentro de uma contínua vinculação entre os que participam da organização.
É um crime coletivo, plurissubjetivo ou de concurso necessário de condutas paralelas, computando-se as pessoas ainda que inimputáveis, cuja presença irá acarretar, a teor do artigo 2º, § 4º, a majorante de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços) se há participação de criança ou adolescente.
Dir-se-ia que se trata de crime envolvendo militares.
Ora, os chamados crimes militares não são crimes políticos.
Ensinou Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, 4ª edição, 1958, volume I, pág. 187) que os crimes políticos são aqueles dirigidos, subjetiva e objetivamente, de modo imediato, contra o Estado, como unidade orgânica das instituições político e sociais.
Na lição de Aníbal Bruno (Direito Penal, tomo II, 3ª edição, 1967, pág. 225) há os critérios objetivistas e subjetivistas.
O critério subjetivista toma em consideração o motivo. É o caráter político do móvel que atribui natureza política ao ato.
Para os objetivistas, será político todo crime que ofende ou ameaça direta ou indiretamente a ordem política vigente em um país.
Para o caso, leve-se em conta que os acontecimentos reportados no dia 8 de janeiro de 2023 não envolvem crimes militares. São crimes políticos.
Ainda na matéria, Aníbal Bruno trouxe à colação o artigo 8º do Código Penal Italiano: “É delito político todo delito que ofende um interesse político do Estado, ou um direito político do cidadão. Considera-se também delito político o delito comum determinado no todo ou em parte, por motivos políticos”.
Disse então Aníbal Bruno naquela obra:
“Tomado assim o conceito, tem-se procurado estabelecer entre os crimes políticos: crimes políticos próprios, os que ofendem a organização política do Estado; crimes políticos impróprios, os que acometem um direito político do cidadão. E, ainda, crimes políticos puros, os que têm exclusivamente caráter político e crimes políticos relativos, compreendo os complexos ou mistos, que ofendem ao mesmo tempo um direito político e um bem jurídico tutelado pelo Direito Penal comum, e os crimes políticos conexos a crimes políticos.”
Diverso, é o crime taxado como crime social, em que o criminoso se rebela contra a organização econômico-social do mundo.
Como bem acentuou o site de notícias jurídicas Consultor Jurídico, em 27 de fevereiro de 2023, a Justiça Militar não julga crimes cometidos por militares, mas crimes militares. Assim, é de competência do Supremo Tribunal Federal processar e julgar os envolvidos nos atos de 8 de janeiro, independentemente de serem civis ou integrantes das Forças Armadas.
Com base nesse entendimento, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, autorizou a Polícia Federal a abrir uma investigação” para apuração de autoria e materialidade de eventuais crimes cometidos por integrantes das Forças Armadas e Polícias Militares relacionados aos atentados contra a Democracia que culminaram com os atos criminosos e terroristas do dia 8 de janeiro de 2023″.
*É procurador da República aposentado com atuação no RN.
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