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Reportagem

Lula faz um ano na cadeia à espera do STJ e empenhado em controlar o PT

Homem segura cartaz pedindo liberdade para o ex-presidente Lula, no dia 31 de março (Foto: LEO CORREA/AP)

Por Felipe Betim e Afonso Benites

El País

A prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva completa um ano neste domingo, 7 de abril, com o PT tentando reanimar a militância com atos pelo “Lula Livre” e adiando apenas para o segundo semestre a troca de poder na legenda, que ainda disputa espaço para se firmar como protagonista na oposição ao presidente Jair Bolsonaro (PSL). O consenso no partido é o de que as condenações por corrupção passiva e lavagem de dinheiro nos casos envolvendo o triplex do Guarujá e o sítio de Atibaia — 12 anos e 11 meses em ambos os casos — foram injustas e de que a prisão do ex-presidente é política. Na sigla, os atos pelo ex-presidente são uma forma não só de manter a pressão sobre o Judiciário como também de manter petistas e os movimentos sociais mais próximos unidos sob uma rara bandeira comum.

Da cadeia em Curitiba, Lula acompanha as discussões no partido, cuja eleição interna adiada tem potencial para, pela primeira vez, não corresponder com a vontade do ex-presidente, que já demonstrou seu desejo em manter a deputada federal Gleisi Hoffman na liderança. Com Gleisi na presidência, a influência de Lula nas decisões do partido estariam garantidas. Ao EL PAÍS, a deputada diz que o ex-presidente recebe informes das reuniões do partido. “Ele é o nosso presidente de honra. É natural e importante que ele receba as informações.Quando eu posso, escrevo cartas, porque essas ele pode receber. Trato das reuniões dos diretórios, das reuniões que fazemos, das decisões que tomamos”, contou Gleisi.

No plano legal, as esperanças de uma absolvição e soltura do petista são escassas. O presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Antonio Dias Toffoli, decidiu adiar o julgamento sobre a constitucionalidade da prisão após a condenação em segunda instância, que estava marcada para a quarta-feira dia 10 e teria repercussão no caso. Agora, residem no recurso levado pela defesa ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o primeiro tribunal superior que analisará a sentença em segunda instância do caso Triplex — o caso do sítio Atibaia só foi julgado em primeira instância. Tanto o STJ como o STF só analisaram até o momento pedidos de soltura do ex-presidente, mas não a condenação em si. Ainda não há uma data marcada para que a 5ª turma do STJ se reúna, mas a defesa espera que isso ocorra em breve. Segundo o advogado Cristiano Zanin, a defesa pede e enfatiza no recurso a anulação do processo nas instâncias inferiores ou uma absolvição. Também apresenta argumentos auxiliares que poderiam levar a uma revisão do tamanho da pena — o que pode resultar, por exemplo, em prisão domiciliar — ou a prescrição do caso.

A defesa contesta as acusações e considera que não há provas suficientes de que a OAS presenteou o ex-presidente com um triplex no Guarujá como pagamento de propina por contratos na Petrobras. Apresenta ainda um leque de argumentos, como uma suposta falta de imparcialidade do juiz Sergio Moro — hoje ministro da Justiça de Bolsonaro— ou a negativa de que uma prova pericial no processo fosse produzida. Segundo Zanin, a defesa também contesta a competência da Justiça Federal para tratar do caso com base em suas decisões do Supremo. A primeira, de 2015, resultou no fatiamento da Lava Jato e deixou nas mãos da força tarefa de Curitiba apenas os casos relativos a corrupção na Petrobras. A defesa acredita que o caso não tem relação com o escândalo envolvendo a petroleira, embora a sentença condenatória estabeleça uma relação entre os contratos entre empreitas e a Petrobras com o triplex reformado que a OAS teria repassado para Lula. A segunda e mais recente decisão do STF, por seis votos a cinco, determinou que cabe a Justiça Eleitoral julgar crimes comuns, como os de corrupção e lavagem de dinheiro, conexos com delitos eleitorais de caixa 2.

“A jurisprudência do STJ é incompatível com a condenação do ex-presidente. Então, estamos pedindo que a Corte reafirme sua própria jurisprudência”, explica Zanin ao EL PAÍS. O problema é que, de acordo com uma pesquisa realizada pela Corte com base nos julgamentos de 69.000 recursos entre 2015 e 2017, apenas 0,62% dos casos julgados no STJ reverteram totalmente as decisões das instâncias inferiores e resultaram na absolvição do réu. A mesma pesquisa indicou que em 1,02% dos casos os ministros da 5ª e 6ª turma reverteram a pena de prisão por uma pena “restritiva de direitos”, como a prestação de serviços comunitários. Em 0,76% dos casos foi reconhecida a prescrição. Para Zanin, contudo, o caso do ex-presidente é peculiar. “Estamos vendo ao longo do tempo a ocorrência de diversas ilegalidades e abusos que precisam ser coibidos”, diz ele, no momento que a o entorno de Lula se queixa da falta de recursos para tocar a própria defesa. Há bens e contas bancárias do ex-presidente bloqueados por ordem de Moro e, por isso, há ações que buscam arrecadar dinheiro para a causa. Nesta semana, um grupo de fotógrafos anunciou ter arrecadado mais de 600.000 reais leiloando fotos históricas do petista.

Um PT em busca de protagonismo

No campo político os obstáculos não são menores. O PT tem a maior bancada na Câmara, com 55 deputados — um a mais que o PSL de Bolsonaro —, e é a maior força de oposição ao Governo. Mas, por ora, continua apostando suas energias na campanha pelo “Lula Livre” enquanto que as pesquisas indicam uma cristalização do apoio popular à prisão do ex-presidente — segundo o Atlas Político, cerca de 57,9% do eleitorado. “O partido ficou muito preso a isso. Não sei se dentro do partido existe consenso sobre o que fazer. Enquanto isso, o ‘Lula Livre’ dá certa unidade de ação para a máquina partidária. É algo que mantém todos unidos”, explica o sociólogo Celso Rocha de Barros.

Para ele, a “atualização” do PT ainda depende de como o Governo Bolsonaro, que completa cem dias nesta semana com a popularidade em queda, vai se sair. Ainda assim, ele chama atenção para o fato de que, embora numericamente maior, é mais comum ver lideranças de outros partidos progressistas, como os deputados Alessandro Molon (PSB), Tabata Amaral (PDT) ou Marcelo Freixo (PSOL), na linha de frente da oposição. “O partido ainda não assumiu uma liderança lá dentro, porque está preso a essas questões”, explica. Em jogo está também uma disputa também no campo progressista pela hegemonia, ocupada pelo PT há 30 anos.  “Se eles querem substituir o PT, precisam atrair as pessoas que gostam o PT. O Ciro Gomes, por exemplo, pela suas declarações e posturas, acaba sendo antipático para os eleitores PT. Além disso, essas pessoas foram coadjuvantes durante muito tempo e não precisaram se posicionar sobre questões econômicas e políticas de governo. Isso ficava na conta do PT”, pondera Rocha de Barros. “No mínimo”, explica ele, “a competição vai fazer bem e vai obrigar os petistas a se mexerem”.

Essa renovação depende também da liderança do partido, hoje nas mãos de Gleisi Hoffmann, apesar das ressalvas de alguns petistas. A política paranaense é considerada uma das responsáveis por manter como prioridade do partido a pauta do “Lula Livre”, enquanto há pouco debate sobre renovação partidária e outras questões programáticas a um ano e meio das eleições municipais. “Nós consideramos o Lula um preso político. Lula é a grande liderança política e popular desse Brasil. Depois dele não surgiu mais ninguém com essa envergadura, com essa grandeza, com esse poder de mobilização”, reafirma Gleisi.

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Comentário do dia

Ex-presidentes presos o que celebrar?

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Reportagem

A queda de outro ex-presidente do Brasil, a nova fatura da Lava Jato à velha política brasileira

Lula e Temer estão presos (Foto: UESLEI MARCELINO -REUTERS)

Por Naiara Galarraga Gortázar

El País

Dois dos sete presidentes que o Brasil teve desde o fim da ditadura dormem atrás das grades, derrotados pelas suspeitas de corrupção. Michel Temer, 78 anos, está há duas noites em uma sala de 20 metros quadrados sem janelas, mas com vaso sanitário, chuveiro e ar condicionado, em uma sede da Polícia Federal no Rio de Janeiro. Luiz Inácio Lula da Silva, 73 anos, cumpre quase um ano de reclusão em uma cela preparada especialmente para abrigá-lo em instalações da PF em Curitiba (Paraná), epicentro da investigação da Operação Lava Jato. Nessa novela de centenas de capítulos com heróis, vilões, tramas e subtramas na qual o caso se transformou, a prisão de Temer na última quinta-feira representa uma guinada no roteiro que causou impacto, apesar de ser uma possibilidade há vários capítulos. Mais precisamente desde 1 de janeiro, quando o veterano político perdeu a imunidade ao entregar a faixa presidencial a Jair Bolsonaro.

O juiz Marcelo Bretas afirma que Temer era “o líder de uma organização criminosa” que durante 40 anos cobrou propinas em troca de contratos públicos, inflou orçamentos de obras, lavou dinheiro e até mantinha um departamento de contrainteligência para prejudicar as investigações.

Esta trama que ganhou fama em torno da Petrobras e da construtora Odebrecht foi crescendo e cobrou uma fatura alta à velha política brasileira. Outros três governantes foram investigados em casos derivados da Lava Jato, incluídos os que foram destituídos por impeachment, Dilma Rousseff, a quem Temer sucedeu em 2016, e Fernando Collor de Mello. Outro é José Sarney, denunciado por suspeitas de envolvimento com desvios da Transpetro. O único ex-presidente vivo a salvo é Fernando Henrique Cardoso, que foi mencionado na investigação, mas por fatos considerados prescritos. Em cinco anos outros 150 poderosos políticos e empresários entraram na prisão, enquanto o descontentamento da população com a classe política aumentava.

Como pano de fundo da prisão, um novo capítulo na batalha entre juízes e promotores da Lava Jato e a classe política tradicional. Um episódio no qual se destacam o juiz que prendeu Lula e agora é ministro da Justiça, Sergio Moro, e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, cujo sogro é Moreira Franco, ex-ministro preso no mesmo dia que Temer. Como nas novelas, às vezes é difícil acompanhar a trama e as relações cruzadas do elenco. Enquanto isso, impera o temor de que a prisão do ex-presidente, que ainda tem aliados no Congresso, complique a aprovação de projetos impopulares como a reforma da Previdência, vista como crucial para reativar a economia.

Um dos motivos do sucesso eleitoral de Bolsonaro é que o tsunami da Lava Jato não passa perto dele. Apesar de um de seus filhos, Flávio, senador, ser investigado por lavagem de dinheiro à margem da trama. O presidente atribuiu a prisão aos “acordos políticos (de Temer) para garantir a governabilidade”, mas um dos dirigentes de seu partido, Major Olímpio, empregou o tom que tanto agrada os bolsonaristas: “Prisão para todos que dilapidaram o patrimônio do povo brasileiro e envergonharam a política. Precisam pagar, sim, perante a Justiça”.

Temer é o último político envolvido (até agora) nessa enorme teia. A edição do EL PAÍS no Brasil publicou em primeira mão a partir de 2017 alguns dos documentos que supostamente comprovam a cobrança de subornos e que os promotores citam em seu pedido de prisão de Temer. Ninguém podia imaginar em 17 de março de 2014 que o que nascia como uma investigação sobre uma suposta lavagem de dinheiro em um lava jato pudesse se tornar o maior escândalo de corrupção da história do Brasil e estendesse suas ramificações por toda a América Latina.

Mas esse mega escândalo que pôs à luz uma corrupção sistêmica da qual se beneficiavam empresas e políticos de todos os partidos foi o estopim de mudanças profundas que no Brasil se materializaram em um presidente de ultradireita e uma oposição irrelevante. O abalo também é forte no Peru, com a líder de oposição, Keiko Fujimori, na prisão, e vários ex-presidentes envolvidos: Alejandro Toledo, fugido para os Estados Unidos, Ollanta Humala, que passou pela prisão, e outros dois cuja saída do país está proibida. A trama salpicou por meio de campanhas eleitorais os colombianos Juan Manuel Santos e Álvaro Uribe. No México, não se abriu uma só investigação apesar das acusações contra um ministro de Enrique Peña Nieto, nem na chavista Venezuela.

Ao menos quatro outras noites sob custódia é o que aguarda Michel Temer, porque seu pedido de habeas corpus só será analisado na quarta-feira. Em seu primeiro interrogatório manteve silêncio depois de ter afirmado que, diante de seus conhecimentos de advogado constitucionalista, a prisão preventiva era “absolutamente improcedente”.

Na mesma operação foram detidos sete supostos cúmplices do ex-presidente do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), um partido fisiológico, sem ideologia e especializado em dar a maioria aos partidos governantes em troca de postos-chave com acesso a contratos públicos.

Com a chegada de 2019, Temer passou a ser um cidadão como outro qualquer. Seus casos voltaram para a Justiça comum e a investigação prosseguiu. Nunca foi querido. Chegou ao topo depois do impeachment de Rousseff, do Partido dos Trabalhadores de Lula, e saiu do Palácio do Planalto com uma popularidade de 7% depois de presenciar como o deputado veterano com uma carreira política irrelevante conseguia capitalizar a ira dos brasileiros contra a corrupção. O capitão do Exército Bolsonaro soube catalisar como ninguém o profundo fastio de seus compatriotas com a velha classe política —a qual ele, no entanto, pertence há três décadas—, sua ânsia de derrotar o sistema e de apostar em uma novidade extremista como ele.

Temer também teve de passar pela humilhação de que o país inteiro visse na televisão cada minuto de sua queda graças à descomunal cobertura da imprensa inclusive com câmeras em helicópteros. O público viu seu primeiro olhar de surpresa e desgosto, os dois policiais armados com fuzis automáticos, seu transporte ao aeroporto para voar até o Rio de Janeiro e sua entrada na sede policial que se converteu em seu novo dormitório, por enquanto.

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Lula está preso, Voltaire está morto. Babacas!

Por Rogério de Campos*

Diplomatique

O caso Calas é uma das pedras fundamentais daquilo que tem sido chamado sistema democrático ocidental. Quando o Brasil se coloca como parte da vanguarda do processo regressivo que pretende destruir tal sistema e as ambições do Iluminismo (Estado Laico, educação pública, liberdade de expressão…), podemos dizer ser inevitável ter seu caso Calas, que, qual em rituais esotéricos, deve ser conjurado e revertido simbolicamente

O magistrado David Beaudrigue estava convicto: o jovem Marc-Antoine Calas fora assassinado pela própria família. O pai, a mãe e um dos irmãos, e também a empregada Jeanne Viguière e um jovem amigo da família, Gaubert Lavaysse: todos que estavam na casa naquela noite do dia 13 de outubro de 1761 diziam que ao descer da sala de jantar, que ficava no primeiro andar, para o térreo, encontraram o corpo de Marc-Antoine no chão. Falou-se de um desconhecido misterioso que fugira, sem ser identificado. Falou-se de uma punhalada. Mas o médico retirou a gravata de Marc-Antoine e ali estava a marca no pescoço: o rapaz fora enforcado ou estrangulado.

Na cidade de Toulouse, no sudoeste da França, Beaudrigue era mais que um magistrado comum: era um capitoul, ao mesmo tempo investigador, promotor e juiz. Usando sua autoridade, naquela mesma noite mandou para a prisão todos que estavam na casa, inclusive o cadáver.

No dia 15, a verdade veio à tona: Marc-Antoine se suicidara. Seu irmão, Pierre Calas, e Gaubert Lavaysse o encontraram enforcado. Desesperados, chamaram o pai, Jean Calas. Os três desceram o corpo para o chão. A mãe, Anne-Rose, ficou assustada com os gritos e pediu a Jeanne que fosse ver o que acontecera. Só depois Anne-Rose foi até lá. Em meio ao desespero, Jean Calas ordenou a todos que não contassem a ninguém que Marc-Antoine se suicidara. Temia o castigo que era tradicionalmente imposto aos suicidas: seu corpo era amarrado nu a uma grade (a claie d’infamie), arrastado pelas ruas da cidade, apedrejado, até ser jogado no depósito de lixo da cidade.

Mas, apesar dessa confissão, o capitoul Beaudrigue continuava convicto: a família, com a ajuda de Jeanne e de Lavaysse, assassinara Marc-Antoine. Ordenou que todos continuassem presos. Outro capitoul, Lisle Bribes, aconselhou ao colega um pouco de calma e questionou a regularidade daquela detenção. Impaciente, Beaudrigue respondeu:

– Isso é comigo, o que está em causa é a religião (“Je prends tout sur moi. C’est ici la cause de la religion”).

Beaudrigue era católico. A família Calas era protestante.

O capitoul aparentemente acreditava nos boatos que começaram a correr pela cidade segundo os quais Marc-Antoine fora assassinado pela família porque desejava se converter ao catolicismo.

O quanto havia de fanatismo religioso em Beaudrigue é difícil de determinar. Durante alguns séculos, ele foi visto por historiadores como um magistrado rígido, cruel e intolerante. Voltaire o considerava tudo isso e também um patife, mas não tinha provas para esta última acusação. Em 1927, Anatole Feugère, professor da Faculdade de Letras de Toulouse, pesquisando nos arquivos da Corte de Justiça da cidade, descobriu documentos de um antigo processo que revelaram o quanto a intuição do filósofo estava correta: os velhos papéis demonstraram que Beaudrigue pouca coisa fazia que não motivada por subornos ou interesses pessoais. Recebia dinheiro de donos de salões de jogos e prostíbulos para fazer vista grossa. Tomava para si cargas de vinho apreendidas de contrabandistas e, santarrão, até promovia orgias em sua casa de campo. Em uma ocasião, usou sua autoridade para punir duramente o ex-amante de sua amante.

Mas, mesmo sem as descobertas do professor Feugère, seria fácil suspeitar das motivações de Beaudrigue para ser tão cruel com os Calas. O poderoso cargo de capitoul era uma conquista que se fazia no campo das relações políticas. O mais poderoso ministro da França naquele momento era o conde de Saint-Florentin, hostil aos protestantes. Beaudrigue trocava correspondência com Saint-Florentin. Além disso, a elite de Toulouse era totalmente católica e o poder judiciário em boa parte dominado pelos Penitentes Brancos (uma irmandade católica). Matadores de protestantes costumavam ser celebrados como heróis. Ser intolerante com hereges era ótimo para a carreira de um capitoul.

Em Toulouse, que fora uma das capitais da heresia cátara no século XII e depois um centro importante do protestantismo na França, o catolicismo teve que se impor a ferro e fogo. Contra os cátaros foram necessárias três cruzadas. Foi em Toulouse que são Domingos criou a Inquisição. E em 1562 aconteceu um grande massacre de protestantes, no qual foram mortas entre 3.000 a 5.000 mil pessoas. Na época, todos os protestantes sobreviventes foram expulsos da cidade. O aniversário do massacre, comemorado no dia 17 de maio, foi uma das principais festividades da cidade até o século XIX. Nesse dia, como retribuição à luta da cidade contra o protestantismo, o papa concedia indulgências a quem fosse rezar na catedral ou na igreja de Saint-Sernin, na qual se encontra uma peça de madeira entalhada que mostra um porco no púlpito com a legenda: “Calvino, o porco, pregando” (“Calvin le porc, prêchant”).

Em 1761, a população de Toulouse era formada por 50 mil católicos e 200 protestantes. Que conviviam mais ou menos pacificamente. O comerciante Jean Calas tinha negócios com católicos, os Calas tinham amigos católicos e a própria Jeanne, empregada da família há mais de 20 anos, era uma católica fervorosa. Mas haviam aqueles católicos mais que fervorosos, febris. Corria pela região a história de que os protestantes haviam se reunido em um sínodo, na cidade de Nimes, no qual decidiu-se que os pais e mães eram obrigados a matar seus filhos se esses tentassem mudar de religião. E os boatos diziam que Lavaysse fora enviado à casa dos Calas para ajuda-los a executar o filho.

Por mais absurdo que isso pareça, foi justamente essa história delirante de uma conspiração protestante para matar Marc-Antoine a base da argumentação da acusação:

“Calvino diz que todos os filhos que violem a autoridade paterna, quer através do desprezo, quer da rebelião, são monstros e não homens. E que, portanto, Nosso Senhor ordena que sejam condenados à morte todos os que desobedeçam a pai e mãe. Calvino é de opinião que o filho rebelde e desobediente seja morto”. Calvino, segundo a acusação contra os Calas, teria se baseado em Deuterônimo 21:18: “Se alguém tiver um filho rebelde e indócil, que não obedece à voz de seu pai e à voz de sua mãe, e não os ouve mesmo quando o corrigem, então, seu pai e sua mãe pegarão nele, e o levarão aos anciãos da sua cidade e à porta do seu lugar, e dirão aos anciãos da cidade: ‘este nosso filho é rebelde e indócil, não dá ouvidos à nossa voz, é um devasso e beberrão’. Então, todos os homens da sua cidade o apedrejarão com pedras, até que morra”.

Os outros protestantes, de Toulouse e da região, ficaram escandalizados com tal acusação. Denunciaram que o suposto sínodo em Nimes nunca acontecera e que o documento em que Calvino exortara o assassinato de filhos rebeldes era falso. Mas Beaudrigue não lhes deu atenção. Ele tinha outra preocupação: se não havia qualquer prova de que os Calais haviam matado o filho era preciso ao menos provar que havia um motivo para que eles o tivessem feito, provar que Marc-Antoine de fato pretendia se converter ao catolicismo. E o capitoul não tinha nem essas provas. Tinha boatos e tinha sua convicção.

Beaudrigue decidiu então lançar uma “monitória”, uma espécie de chamamento para que pessoas que soubessem de algo sobre o caso aparecessem para depor. Pela monitória, se alguém soubesse algo e não se manifestasse estaria automaticamente excomungado. Em geral, as monitórias funcionavam: com medo de serem condenadas ao inferno, as pessoas que tinham alguma informação corriam para depor. Também em geral, as monitórias não costumavam especificar se queriam depoimentos a favor ou contra os réus. Não era o caso dessa emitida por Beaudrigue, claramente direcionada: queria ouvir quem soubesse algo da conversão de Marc-Antoine, das ameaças que os pais faziam a ele, de uma reunião em que se deliberou sua morte, daquela noite do dia 13 na qual “esta execrável deliberação foi executada, fazendo ajoelhar Marc-Antoine, o qual, pela surpresa ou pela força foi estrangulado ou enforcado” e, por fim, “todos os que saibam quem são os autores, cúmplices, implicados, aderentes deste crime, que é dos mais detestáveis”.

E aí apareceu de tudo, gente que viu Marc-Antoine em igrejas, rezando, e até uma moça que se dizia ex-protestante e que garantiu que o rapaz não só se convertera ao catolicismo, mas também a convertera (depois ficou claro que a história era fantasia da garota, que sempre havia sido católica).

Um exemplo de depoimento:

“Massaleng, viúva, declarou que sua filha lhe contou que o senhor Pagès havia contado à ela que M. Soulié havia contado a ele que a senhorita Guichardet contara a ele que a senhorita Journu havia dito algo a ela que a fez concluir que o padre Lerraut, um jesuíta, tinha sido o confessor de Marc-Antoine Calas”. O padre Lerraut foi convocado para depor e demonstrou que a história não era verdadeira.

Portanto, não havia provas e os testemunhos eram bem frágeis. Mas Beaudrigue tinha convicção e isso ele podia provar: ordenou que Marc-Antoine tivesse um pomposo enterro como mártir católico. Juntou-se uma multidão, vieram delegações de todas as ordens religiosas e todas as confrarias de penitentes. Ou seja, a hipótese de que Marc-Antoine tivesse se suicidado havia sido completamente descartada.

Condenados à morte na primeira instância, os Calas recorreram à segunda instância, que era a Corte de Justiça de Toulouse. Mas ali também não havia esperança: até porque diversos dos juízes eram da irmandade dos Penitentes Brancos. Um dos juízes chegou a dizer às duas filhas de Calais (que não estavam na casa no dia 13 de outubro, portanto não foram implicadas no caso): “Não tendes outro pai agora, senão Deus”.

Ainda assim, os juízes vacilavam: também tinham a convicção da culpa, mas viam que ela não estava demonstrada. Não havia provas. Então alguém teve a ideia de julgar e condenar Jean Calas separadamente. Acreditavam que ele, um pacato comerciante de 64 anos, não aguentaria as torturas que precediam a execução, muito menos encarar o cadafalso: iria confessar e entregar seus cúmplices.

Às quatro horas da manhã do dia 10 de março de 1762, depois de passar a noite na infernet (masmorra reservada aos condenados à morte) foi levado à câmara de torturas. Dois padres ainda tentaram convencê-lo a converter-se ao catolicismo, para assim salvar sua alma já que a vida estava perdida. Mas ele se recusou.

Beaudrigue o esperava na câmara e anunciou que aquele seria o último interrogatório. Calas foi torturado por horas, mas resistiu a todas as tentativas do capitoul de arrancar dele uma confissão. Por fim, foi levado para a praça de Saint-Georges, que já estava lotada pela multidão. O cadafalso estava montado. Jean Calas foi condenado a ser morto na roda, uma das mais cruéis formas de execução: a vítima é colocada sobre uma roda, seus ossos são quebrados e ela fica ali, às vezes sendo comida viva pelos corvos e aves de rapina, até que morra de dor ou que a autoridade tenha a misericórdia de dar o golpe final. Beaudrigue fez mais uma tentativa, pareceu vacilar em sua convicção e admitir que talvez outra pessoa tivesse assassinado Marc-Antoine:

– Calas, embora inocente, sabe talvez quais foram os autores do crime cometido contra a pessoa de Marc-Antoine?

– Não sei.

Calas ficou duas horas na agonizando naquela roda, até que o carrasco o estrangulou. Seu corpo então foi lançado a uma fogueira.

Conta-se que enquanto ele agonizava um padre chamado Bourges fez uma última tentativa de arrancar sua confissão. E o Calas respondeu irritado:

– Padre?! O quê?! Também acredita que se possa matar um filho?!

Talvez um tanto desnorteados com a inesperada firmeza de Jean Calas, os juízes liberaram os outros acusados dias depois. Pierre foi condenado a um simulacro de exílio perpétuo: foi levado para fora de um dos portões da cidade e então conduzido novamente para dentro da cidade, para o convento dos dominicanos onde ficou sob vigilância até o dia 4 de julho, quando fugiu.

Voltaire vivia do outro lado da França, em Ferney, na fronteira com a Suíça. Quando ouviu a história do protestante que matou o filho, chegou a fazer piada a respeito. O filósofo aceitava como fato que Jean Calas era um fanático que matou o filho porque este queria se tornar católico. Voltaire tinha tanto desprezo pela intolerância católica quanto pela protestante.

Mas um comerciante de Marseille, que vinha de Toulouse e estava de passagem por Ferney, contou a Voltaire a outra versão da história. O filósofo ainda assim, resistiu a acreditar que os juízes pudessem ter errado. Escreveu a um amigo que o crime de Calas lhe parecia pouco verossímil, “mas é menos verossímil ainda que os juízes, sem qualquer interesse, tenham feito perecer um inocente no suplício da roda”.

Voltaire começou uma espécie de investigação para chegar à verdade. Mandou cartas para amigos que podiam saber mais do caso. “Quero saber de que lado nesse caso está o horror do fanatismo”, diz em uma das cartas. Por fim, se convenceu da inocência de Calas. E iniciou a épica campanha para que a verdade viesse a público. Seu célebre Tratado sobre a Tolerância (Traité sur la tolérance à l’occasion de la mort de Jean Calas – 1763) é parte dessa campanha que alcançou a vitória no dia 9 de março de 1765, quando o Conselho Real, em Paris, reabilitou Jean Calas e sua família, que foi indenizada pelo rei. Exatamente três anos depois da sentença que condenou Calas à morte.

O ministro Saint-Florentin tratou de se desvincular discretamente do caso. Usou outra falha de Beaudrigue, em outro caso, como desculpa para destituí-lo. Beaudrigue enlouqueceu. Tentou suicídio duas vezes. Na segunda tentativa foi bem-sucedido.

Voltaire tinha 70 anos quando ouviu falar de Calas pela primeira vez. Já havia feito sua fama como filósofo. Mas o caso daquele comerciante de Toulouse revolucionou sua biografia: ele se tornou um herói, um campeão na defesa dos injustiçados. E se tantos bustos dele enfeitam bibliotecas até hoje é menos por causa de Cândido que por Calas. Nove de março de 1765 passou a ser o jour de gloire do iluminismo francês.

Para diversos historiadores, o caso Calas marca o início da campanha contra a pena de morte e contra a tortura. O caso virou o grande monumento ao princípio jurídico da Presunção da Inocência. Tal princípio já estava presente no Corpo do Direito Civil, de Justiniano: “Ei incumbit probatio qui dicit, non qui negat” (“Àquele que disse e não ao que nega incumbe à prova”), mas foi mais ou menos esquecido durante a Idade Média, que talvez tenha começado a acabar quando o cardeal e jurista francês Jean Lemoine escreveu “item quilbet presumitur innocens nisi probetur nocens” (“uma pessoa é considerada inocente até ser provada culpada”).

É também em 1765, ano da reabilitação de Calas, que William Blackstone publica Commentaries on the Laws of England com seu famoso ratio: “é melhor que dez culpados escapem à condenação que um inocente sofra”. Podemos pensar que isso foi coincidência, resultado da Inglaterra estar mais adiantada em seu caminho rumo à democracia. Mas é certo que é Calas quem está na memória dos autores da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) quando eles escrevem o artigo 9: “Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei”.

É claro que os Judiciários do mundo inteiro seguiram cometendo as injustiças que lhes são próprias. Mas a passou a existir aquela monumental referência do que é certo.

O caso Calas é, portanto, uma das pedras fundamentais daquilo que tem sido chamado sistema democrático ocidental. Assim, quando o Brasil se coloca como parte da vanguarda desse processo regressivo que pretende destruir tal sistema e as ambições do Iluminismo (Estado Laico, educação pública, liberdade de expressão…), poderia se dizer que era quase inevitável ter seu caso Calas, que, qual em rituais esotéricos, deve ser conjurado e revertido simbolicamente. Como se o caso precisasse ser refeito para que todas as consequências que teve possam ser revertidas. Então a tragédia de Toulouse volta a acontecer em Curitiba, na forma de farsa.

Como em Toulouse, o capitoul Sergio Moro não tem provas que sustentem a condenação de Lula. Moro, como Beaudrigue no passado, sequer consegue provar que há um crime. Existem os depoimentos, alguns delirantes, alguns maliciosos e interessados, alguns depoimentos, em Toulouse, arrancados à custa de ameaças de excomunhão, vários em Curitiba arrancados às custas de torturas (e não é tortura manter um cidadão preso por meses até que ele confesse a suposta culpa de outro cidadão?).

Mas há a diferença fundamental para o primeiro caso Calas: agora ninguém perde de vista de que se trata de uma farsa. Sabem disso tantos os juízes do Supremo que se colocam como reféns dos ritos quanto o colunista de jornal para quem a condenação faz justiça ainda que o Lula não seja culpado dos crimes que a motivaram. Sabe disso até mesmo o nerd boçal que repete eufórico “Lula tá preso, babaca!” e comemora a prisão como o fanático torcedor comemora um gol de mão.

Chega a ser injusta a acusação de hipocrisia feita aos protagonistas dessa farsa. Porque eles não prestam tal respeito à virtude. Tudo está à vista, porque precisa ser à vista: só assim serve como aviso. O que demorou, talvez, a ficar claro é que o objetivo, como já se viu, não foi apenas impedir o que aparentemente era inevitável: a reeleição do ex-metalúrgico. Mas impedir a possibilidade de eleição de um metalúrgico. Não apenas destruir o legado do PT, ou da Esquerda, ou do Getulismo, mas destruir também o legado da Revolução Francesa.

E nós, da periferia do capitalismo, que tínhamos várias razões para duvidar da pertinência do termo Civilização Ocidental, vemos a Democracia, que mal tinha posto os pés aqui, voltar para o navio e partir.

*É editor, tradutor e autor dos livros Revanchismo, Dicionário do Vinho (Prêmio Jabuti) e Imageria (Prêmio HQ Mix). Seu livro mais recente, Super-Homem e o Romantismo de Aço (Ugra Press, 2018) fala da relação do gênero super-heróis com o fascismo

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Lula sofre segunda condenação

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lula sofre segunda condenação (Foto: UOL)

Bernardo Barbosa

Do UOL, em São Paulo

A juíza Gabriela Hardt, da Justiça Federal de Curitiba, condenou nesta quarta-feira (6) o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a 12 anos e 11 meses de prisão no processo da Operação Lava Jato sobre obras realizadas por empreiteiras em um sítio de Atibaia (SP). Lula foi punido pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Leia a íntegra da decisão.

Hardt assumiu interinamente todas as funções do juiz Sergio Moro após o magistrado aceitar o convite do presidente Jair Bolsonaro (PSL) para assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública no novo governo. O substituto oficial do juiz, após abertura de concurso, deve ser anunciado nesta sexta (8);

Como a condenação ocorreu em primeira instância, Lula ainda pode recorrer da sentença. No processo, o ex-presidente insistiu na tese de que é alvo de uma perseguição política e negou ser dono do sítio. Sua defesa também afirmou que não há provas de que as reformas na propriedade tenham ligação com o esquema de corrupção das empreiteiras com as Petrobras.

A propriedade pertence ao empresário Fernando Bittar, cuja família é amiga da de Lula há décadas, e era frequentada pelo ex-presidente e seus parentes.

A ACUSAÇÃO

Segundo a denúncia do MPF (Ministério Público Federal), Lula foi um dos beneficiários dos recursos desviados da estatal. No caso do sítio, ele teria recebido propina por meio das reformas na propriedade pagas pelas empreiteiras Odebrecht, OAS e Schahin (esta última tendo como intermediário o pecuarista José Carlos Bumlai). A vantagem indevida somaria R$ 1,02 milhão.

A Schahin iniciou as obras no sítio em 2010 e gastou R$ 150.500. Depois, a Odebrecht e a OAS assumiram os trabalhos. A primeira gastou R$ 700.000 e a segunda, R$ 170.000. Ex-funcionários das duas empresas afirmaram que as reformas tinham Lula como beneficiário.

O MPF também diz que Lula comandou o esquema de corrupção na Petrobras, com a nomeação de diretores que atuaram para beneficiar ilegalmente Odebrecht e OAS em contratos com a estatal.

Em seu interrogatório, o ex-presidente do Grupo Odebrecht, Marcelo Odebrecht, declarou que a empresa realizou reformas no sítio em benefício de Lula, mas negou que as obras tivessem relação com o esquema de corrupção na Petrobras.

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Os saberes não tiram férias

Por Cezar Britto

O Brasil escolheu o mês de janeiro para, tradicionalmente, dedicar um espaço no calendário para as férias escolares. Esses encontros anuais, mesmo quando interrompidos nos desgastantes momentos de garimpagem dos caríssimos livros escolares, são aguardados com certa ansiedade. Viajando ou não, os pais e as mães recebem de volta as suas crias, dando uma pausa na terceirização da transmissão dos saberes. Em tese, os educadores originais reencontram, por livres quereres ou impostos deveres, a filharada e reassumem as tarefas antes, em parte, delegada aos professores e às professoras. E assim, como ocorrera no período letivo, as férias escolares servem de aprendizado coletivo e mudança no patamar de relacionamento.

As atuais férias têm sido especiais fontes de conhecimento e mudança. O Brasil, entre discursos, multidões, soltados, armas, gestos e ameaças de sangrar o verde-oliva da bandeira, anotou no Livro de Posses o nome do seu 38º presidente. Neste ato, sob o pesado esquema de segurança, entre gestos de mãos simbolizando tiros, a cidadania brasileira aprendeu, via delicados movimentos emanados da tradicionalíssima figura da primeira-dama, a importância educacional e inclusiva da Linguagem Brasileira de Sinais – Libras. Michelle Bolsonaro divulgara, de forma inédita, a Lei 10.436/2002 e o Decreto 5.626/2005, assinados pelos presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, subscritos pelos seus respectivos ministros da Educação Paulo Renato e Fernando Haddad.

A surdez governamental que se prendia modificada, entretanto, não entrou em férias. A notícia da extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, uns dos primeiros atos anunciados pelo atual encarregado da política educacional brasileira, exemplifica o que a estudantada encontrará na volta às aulas. Estranhará, certamente, que os novos livros didáticos não terão mais compromisso com a pluralidade que integra a alma brasileira em suas diversas manifestações culturais, sociais, éticas, étnicas e regionais, tampouco com o combate à violência contra as pessoas vulneráveis. A linha educacional será única: a imposição ideológica do pensamento de que todas ideologias são pecaminosas, salvo a própria ideologia dos governantes.

Daí a razão da verberação contra os livros de História e de Ciência. Afinal, para os “novos ideólogos” não há sentido ensinar que a “terra gira em torno do sol”, que “São Jorge não mora na lua”, que a ciência descobre ou que a evolução da espécie é fenômeno científico natural. Pregam a morte de Caio Prado, Capistrano, Carlos Chagas, Copérnico, Celso Furtado, Oswaldo Cruz, Dante de Alighieri, Darcy Ribeiro, Darwin, Descartes, Diderot, Erasmo de Roterdã, Galileu, Giordano Bruno, Hobbes, Kant, Kepler, Lattes, Locke, Lutz, Milton Santos, Pascal, Paulo Freire, Rousseau, Sêneca, Sócrates, Voltaire, Zerbinie, todos aqueles que têm no saber a melhor forma de ensinar a vida. Pretendem, ao que se percebe, um remasterizado Index Librorum Prohibitorum, Edição MEC 2019.

Mas não apenas no campo dos livros e das disciplinas os estudantes poderão encontrar mudanças no retorno às aulas. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos advertiu que prefere as vestimentas azuis ou rosas, pois entende que deve ser banido para o “Mármore do Inferno” o “pecaminoso pensamento colorido, plural ou simplesmente diferente”. Lembrei-me, entristecido, de Catarina, filha da minha amiga Ana Paula Barreto, que poderá ser convidada a “jogar” na medieval fogueira da “nova ideologia” a camiseta vermelha, o short colorido e a bola de futebol que, orgulhosamente e em pose campeã, exibia em pura força feminina e feminista na foto enviada a mim pela mãe. Aliás, a bola que exibia na foto, mesmo rosinha, será um objeto de museu, pois, segundo os “novos ditames educacionais”, os únicos passatempos permitidos às meninas serão os famosos fogõezinhos, panelinhas, bonequinhas e outros brinquedinhos bonitinhos destinados a transformá-la em uma eficiente dona do lar.

Paulo Freire, um dos condenados a padecer no fogo ministerial, certa vez disse que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”. O mês de janeiro de 2019 começou criando várias dessas possibilidades de ensino, desde aquelas repassadas em família, reveladas nos livros não proibidos, adquiridas dos mestres, vividas em aprendizados próprios ou as conquistadas nos saberes mediatizados pelo mundo. Também trouxe dessaberes já impostos em trevas, destruições de histórias produzidas e desconstruções de conceitos evolutivos. Mas nesta equação de avanços e recuos já esparramada na prancheta do tempo, já aprendemos, precocemente, que quando cessarem as folgas escolares, ressurgindo os matulões estudantis, os saberes seguirão e estarão em disputa, até porque eles nunca tiraram férias.

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O fim da Lava-jato

Por William Robson Cordeiro 

Existiam apenas dois tipos de pessoas com opinião sobre a postura do então juiz Sérgio Moro à frente da Operação Lava-jato: as que sabiam que ele perseguia ferozmente o presidente Lula e as que concordavam com a perseguição. Esta operação, criada a pretexto de combate à corrupção, carregava seu caráter político, de enfrentamento aos líderes progressistas. Agora que não mais existe (não estou falando do simulacro que insiste em permanecer), a Lava-Jato expõe a sua real intenção nesta horrenda narrativa escancarada.

Encarnado como justiceiro, xerife, Sérgio Moro praticou seu justiçamento à base de delações motivadas por torturas e comemoradas em micaretas com abadás do Morobloco e filmes toscos de José Padilha. A Operação Lava-Jato quebrou a indústria pesada no Brasil, a indústria naval e gerou os milhões de desempregados que até hoje contornam quarteirões. Toda esta destruição tinha a única finalidade de prender e neutralizar uma única pessoa: o presidente Lula.

O Brasil foi sacrificado. A Lava-Jato vazava conversas ilegais de presidentes e promovia pirotecnias cinematográficas transmitidas com exclusividade pela mídia. Desenvolvia powerpoints grotestos. Invadia a casa do presidente e nem o colchão em que ele dormia com sua esposa escapou.

Sítio de Atibaia, um tal triplex em praia cafona que teria recebido uma reforma milionária, fato desmascarado pelos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), tudo serviu para incriminar um único indivíduo. E havia uma razão para a Lava-Jato fazer isso  e nada a tem a ver com corrupção.

Sabemos que a Direita não ganha eleição. Direita dá golpe. A Lava-Jato foi uma forte personagem na narrativa que segue com as bizarrices que testemunhamos em 2019 personificadas no Jair Bolsonaro. Os integrantes da Lava-Jato usaram os seus cargos para atuar politicamente. E atuar no combate à esquerda, não no combate à corrupção.

Em meio aos escombros da nação, a Lava-Jato logrou êxito e tirou o presidente Lula do páreo. Não pôde se candidatar à eleição que venceria no primeiro turno e foi colocado numa solitária como o único condenado à prisão perpétua no Brasil. Moro et caterva abriram caminho fácil para que a Direita voltasse ao poder em uma falsa democracia onde o candidato preferido não poderia participar.

Como sabemos, Moro não fez justiça, fez política.

Nos episódios que se seguiam, a extrema-direita vence as eleições e monta equipe de ministros caricatos, de astronauta a pastora, de terraplanista a militar de três guerras mundiais.

Entre eles, está o justiceiro da Lava-Jato, carregando seu prêmio. Moro se valia do Judiciário para fazer política,  e agora, sua condição de político foi totalmente desvelada. A Lava-Jato se revelou um instrumento político perigoso, pois utilizou-se da estrutura da Justiça para perseguir opositores políticos.

Não para por aí. Moro ainda premiou seus colegas de operação. Lembram que ainda na transição, Moro anunciou amigos da Polícia Federal que participaram na perseguição a Lula, como integrantes de sua equipe no ministério? Teve até um almoço na CCBB onde foi a sede do governo de transição.

Alguns dos nomes foram Rosalvo Franco Ferreira, ex-superintendente regional da Polícia Federal no Paraná, e Erika Mialik Marena, uma das primeiras delegadas a comandar a Lava Jato, tendo inclusive batizado a operação.

Todos foram recompensados e a Lava-Jato definitivamente acabou por não haver mais serventia. Moro e os integrantes da operação, modelo que se expande para outros países da América do Sul, com o mesmo modus operandi e finalidades persecutórias, ocupam espaços na política oferecidos pelo maior adversário do Partido dos Trabalhadores: aquele que convocou seus militantes a metralhar a petralhada. Os integrantes da Lava-Jato também não foram esquecidos.

Neste universo, juízes de Curitiba acreditam que o segredo da promoção na carreira está entrelaçada na perseguição a Lula e o PT. A juíza Gabriela Hardt foi milimetricamente colocada para substituir interinamente o Moro depois de receber seu prêmio como ministro de Bolsonaro. Ela já tinha histórico que a gabaritava para a função. Mandou prender o ex-ministro José Dirceu no ano passado, que conseguiu, em seguida, um habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (STF).

Hardt é a mesma autora da frase “se começar nesse tom comigo, a gente vai ter problema”, que virou estampa na camiseta da primeira-dama Michele Bolsonaro. Não sei que problema a mais ou a menos o Lula poderia ter se já estava confinado à prisão perpétua. Naturalmente, Hardt não quis impor respeito como juíza, mas estava ali para cuspir no Lula. Afinal, um dia o prêmio chega.

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Lula, o único condenado a prisão perpétua no Brasil

Por William Robson Cordeiro

Não há como não relacionar dois episódios emblemáticos envolvendo o judiciário. O desta quarta-feira (19) com o de julho passado. No desta quarta, o ministro Marco Aurélio Mello decidiu libertar presos de segunda instância. Um contra-movimento foi construído logo a seguir para desfazer a decisão. No de julho, o desembargador Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da Quarta Região, concedeu um habeas-corpus e, tão rápido quanto o primeiro caso, também foi desfeito.

Ambos os momentos têm apenas uma personagem relevante: o presidente Lula, o único condenado à prisão perpétua no Brasil. É bom rememorar alguns pontos de ambos os atos para que se alcance a compreensão.

No caso do Favreto, a concessão do habeas-corpus ocorreu em um domingo, dia que naturalmente apenas os juízes de plantão estão trabalhando.  Ou seja, o desembargador decidiu, tá decidido, né? Não, não é.

O então juiz Sérgio Moro, hoje ministro de um do maiores oponentes do Partido dos Trabalhadores, comia bacalhau ou pastel de Belém em Portugal quando tomou conhecimento da decisão. Embora juiz de primeira instância, passou uma bronca no desembargador e ligou para a delegacia da Polícia Federal onde Lula estava preso. Disse para que a ordem de Favreto não deveria ser cumprida.

De fato, não foi.

A Globo levantou sua brigada de jornalistas-juristas-sem-diploma-de-Direito  para questionar a competência do desembargador do TRF-4. Várias reportagens tentavam colocar sua decisão sob suspeita por ele eventualmente ter sido indicado por Dilma para a vaga ou ter alguma ligação com o PT no passado. Foram horas e horas de desconstrução da vida de Favreto.

No mesmo domingo, o presidente do TRF-4, desembargador Thompson Flores, em seu merecido descanso depois de uma semana de trabalho, também decidiu trabalhar. E à noite chegou, a decisão do Favreto foi levada na maciota até que a ordem de prisão foi definitivamente mantida.

Lula seguiu preso e, depois disso, todo mundo sabe o que aconteceu. Foi neutralizado da corrida presidencial em que venceria no primeiro turno, como apontavam todas as sondagens.

Seis meses se passaram e o ministro Marco Aurélio Mello decide  libertar todos os condenados em segunda instância com recurso pendente de julgamento. 170 mil pessoas ainda injustiçadas seriam beneficiadas. Mas, somente um deles gerou outra balbúrida jurídica.

A brigada da Globo de jornalistas-juristas-sem-diploma-de-Direito se levantou novamente. Desta vez, contra o Melo. A jornalista Eliane Cantanhede chegou a afirmar na Globonews que Mello sempre teve uma admiração por Lula, o que teria motivado sua ação. Advogados convidados ampliaram o coro criticavam a postura de Mello ad infinitum.

Entrevistas e notas só seriam exibidas se confirmassem a hipótese da emissora de que Lula deveria seguir preso. Não havia preocupação com os outros 170 mil. A guerra era contra somente uma única pessoa.

Recheadas de bravatas, preocupações baratas, medo de insurreição nacional, “irritação da sociedade” que só a Cantanhede previria, todo discurso foi possível. Menos concordar com a decisão de Mello. O ódio escorria da boca da bancada de debates de uma única opinião.

Rápido como coice de bode, como dizem os nordestinos, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, tratou de rasgar a decisão do colega de corte. Rasgou e sentou em cima, apenas cinco horas depois. A Justiça levantou as vendas e viu que dos 170 mil, um dos presos que deveria enfrentar ainda todos os recursos para ser declarado culpado, deve ser condenado à prisão perpétua de antemão.

O Partido dos Trabalhadores sempre foi republicano e crente nas instituições. Lula não fugiu, não pediu asilo. Preso, acredita na postura Justiça brasileira, apesar de partidarizada e já escoltada por militares. O assessor do Toffoli é o general Fernando Azevedo com vínculos estreitos com Bolsonaro, Mourão e a cúpula do Exército. O ministro não iria ser inconsequente nesta altura do campeonato.

Toffoli jogou a decisão em colegiado para abril. Lula seguirá preso e o STF sob o olhar militar a partir de janeiro também se vestirá de verde-oliva. E neste dia, será sacramentada a prisão perpétua do maior e mais popular presidente da história.

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Bolsonaro existe? Foi esfaqueado mesmo, ou é tudo ‘fake news’?

Por JUAN ARIAS

El País 

Talvez a História nunca tenha estado tão insegura entre a verdade e a mentira. Nunca, nem mesmo o presente foi posto tanto em dúvida. Será que descobrimos, de repente, que a verdade no estado puro não existe e que tudo pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo?

Vejamos o Brasil. Tudo parece ser uma coisa e o contrário. Há até quem chegue a perguntar a si mesmo se o capitão Jair Bolsonaro, que conseguiu 57 milhões de votos nas urnas não se sabe como, existe realmente ou é uma miragem. Coloca-se em dúvida até mesmo que tenha sido esfaqueado.

Em um mundo no qual até intelectuais chegam a pôr em dúvida a existência do Holocausto judeu, com um saldo seis milhões de pessoas — homens, mulheres e crianças — exterminadas nos campos de concentração, podemos ter a impressão de que a verdade não existe e não será possível conhecê-la.

Isso é positivo ou negativo? É verdade que dessa forma todos nos sentimos mais vulneráveis e inseguros ao não ser capazes de distinguir entre verdade e mentira. E, ao mesmo tempo, talvez tenhamos de nos acostumar a conviver em uma realidade mais complexa do que pensávamos, que nos obriga a estar mais vigilantes, já que os limites entre realidade e aparência, entre notícia e fake news, estão ficando cada vez mais tornam-se se fazem cada dia mais tênues e indefinidos.

O que sentimos hoje como uma inquietação, talvez porque estivemos séculos sentados tranquilos sobre nossas certezas, pode acabar sendo uma importante purificação. Durante séculos vivemos alimentados pelos dogmas que poder civil ou religioso nos impôs. Tudo era, sem que precisássemos nos preocupar em descobrir, branco ou preto, verdadeiro ou falso, bom ou mau, justo ou injusto. Era assim mesmo, ou será que tínhamos nos acostumado a conviver com a verdade imposta, o que nos dispensava da dúvida? As coisas eram como eram, porque sempre tinham nos ensinado assim. Teria dado muito trabalho colocá-las em discussão.

Sempre acreditamos nos livros de História, como se fossem textos sagrados que não pudessem ser discutidos. E se, na verdade, os livros de História nos quais bebemos durante séculos fossem, em sua maioria, uma grande fake news? Nós nos esquecemos de que, em grande parte, a História foi escrita pelos vencedores, nunca pelos perdedores. Como teriam escrito os mesmos fatos aqueles que perderam as guerras, as vítimas, os analfabetos que não podiam escrevê-la, mas que a sofreram em sua pele?

Será que estaria a salvo da contaminação das fake news o grande livro da Humanidade, a Bíblia, escrita no espaço de mil anos por autores desconhecidos, que as Igrejas cristãs consideram ter sido inspirada por Deus e, portanto, verdadeira? E se descobríssemos que historicamente a Bíblia não resistiria a uma crítica séria? Ou será que alguém pode acreditar que existiram seus personagens mais famosos, como Abraão, Noé, Matusalém e Moisés?

E analisando apenas os quatro evangelhos canônicos que os católicos consideram inspirados por Deus, quanto neles há de histórico e quanto há de catequese religiosa ou política? Qual é a versão verdadeira sobre o julgamento e condenação à morte do profeta Jesus se entre as versões dos quatro evangelistas há inúmeras diferenças bem visíveis? Qual é a figura real de Jesus, a que é apresentada aos judeus da época, cuja morte é totalmente atribuída aos romanos, ou aquela narrada aos gentios e pagãos, em que se carrega nas tintas contra os judeus e fariseus?

Talvez a inquietude que todos sentimos hoje, na nova era em que a Humanidade entrou ao não saber se estamos lidando com notícias verdadeiras ou falsas nem o quanto isso pode condicionar a convivência política e social, se deva, no fim das contas, a algo positivo, embora seja preciso se recompor e recuperar a serenidade para entender que vivemos em um mar agitado, no qual é difícil distinguir um peixe vivo de um pedaço de plástico.

Essa positividade que alguns pensadores começam a farejar na situação angustiante que vivemos, na qual verdade e mentira convivem abraçadas, talvez nasça de algo novo e ao mesmo tempo positivo que não existia no passado. Hoje, pela primeira vez, a crônica cotidiana, a história que estamos vivendo, não é narrada exclusivamente pelo poder, como no passado. Não é narrada pelos que se consideravam donos da verdade e a impunham com a espada na mão, se fosse necessário. Todos os poderes, civis e religiosos, fizeram isso. Hoje, a crônica começa a ser escrita e filtrada também pelos de baixo, pela periferia, por aqueles que não têm mais poder do que o oferecido pelas redes sociais.

Isso sem dúvida levará, como já está ocorrendo, a crises de identidade e à quebra de velhos paradigmas de segurança, como o que os dogmas e as verdades oficiais ofereciam antes. Era tudo mais cômodo e causava menos angústia. Mas não éramos também mais escravos do pensamento único do poder? O fato de não termos de nos preocupar em saber se o que nos ofereciam como história era verdade ou não, ou se era só a verdade de uma parte e não da outra, dava-nos tranquilidade. Hoje, estamos no meio de um ciclone que parece arrastar tudo e não é estranho que nos sintamos inseguros, irritados e até com medo.

Tão inseguros que ainda há quem não saiba realmente quem é Bolsonaro ou se ele é uma invenção, ou se os médicos de dois hospitais de prestígio inventaram a história da facada. E Lula? E Moro? Como se escreverá amanhã a história atual do Brasil? Será que os historiadores de hoje conseguirão nos contar no futuro a verdade ou a fake news sobre o que está vivendo uma sociedade que se sente presa entre a verdade e o boato, entre o que ela gostaria que fosse e o que efetivamente é a realidade — que, afinal, tem possivelmente tem tantas caras e nuances quanto as cores do arco-íris.

É melhor não sofrer tanto e aprender a conviver em um mundo que já não é nem será aquele em que nossos pais viveram. E essa sim é uma verdade. Se opressora ou libertadora, só poderemos saber quando baixar a poeira dessa agitação em torno de verdade e falsidade ou de meias verdades e meias mentiras. O famoso filósofo espanhol Fernando Savater me lembrava de que “se o mundo parasse de mentir, acabaria despedaçado em poucos dias”. Às vezes, uma meia verdade pode salvar o mundo de uma catástrofe. Até a Igreja católica, com seus séculos de experiência em conduzir o poder, cunhou as famosas “mentiras piedosas”.

Para terminar, é verdade que Bolsonaro existe, com mais sombras do que luzes e mais incógnitas do que realidades. E também existe Lula, com toda sua história e todas suas contradições. O que não sabemos é como a História nos contará um dia este momento, que em outras colunas em já chamei de dor de parto, mais do que de funeral e morte. E em todo parto existe, ao mesmo tempo, dor e felicidade, ansiedade e esperança.

E, acima de tudo, a certeza de que a vida, com todas suas amarguras e crueldades, verdades e mentiras, é o único e o melhor que temos. Que no Brasil predomine, apesar de tudo, a cultura da vida e não a da morte. Essa é a grande aposta e a grande resistência. Para isso, todos deveríamos andar de mãos dadas.

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O que Bolsonaro poderia aprender com Lula

Bolsonaro e sua mulher, Michelle, durante culto evangélico no domingo.

JUAN ARIAS

El País

 

Não é uma provocação. Jair Bolsonaro, o capitão reformado recém-eleito presidente do Brasil, começa a ser acusado de algo que foi, em grande parte, responsável pelo sucesso do popular ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Estou me referindo ao fato de que o novo presidente de extrema direita pretenderia limitar-se a “presidir” o Governo, deixando os ministros livres para decidir. Essa característica, no entanto, foi um dos maiores êxitos de Lula, que soube estar rodeado, em seus dois mandatos, de ministros preparados aos quais deu liberdade de ação. Lula reservou-se o papel de presidir a República, de representar o Brasil dentro e fora do país, de ser o árbitro de sua equipe que, em seus dois mandatos, foi de primeira divisão.

Lula, o ex-torneiro mecânico que chegou à presidência gerando medo e apreensão devido ao seu passado, levando a uma disparada do dólar, entendeu, graças ao seu faro político aguçado — como fazem grandes empresas de sucesso —, que era melhor estar rodeado de pessoas de conhecimento inquestionável em suas áreas e dar-lhes campo de ação, sem tentar querer saber de tudo. Não foi um gesto de humildade, e sim de sabedoria de governo.

Hoje Lula pode ser acusado de muitos erros cometidos durante seus dois mandatos e à frente do PT, que continua dominando com mão de ferro da prisão, mas nunca de não ter sabido escolher, em seus dois mandatos, ministros de indiscutível competência. Basta consultar o Google e revisar a lista de ministros de seus dois governos.

Apenas os medíocres têm medo de estarem cercados de pessoas mais competentes que eles. Os verdadeiros líderes, por outro lado, estão sempre procurando por aqueles que estão mais bem preparados. Nas grandes empresas, há pessoas que buscam talentos em todo o mundo, à procura dos melhores em suas áreas.

Talvez o PT tenha começado sua queda quando, ao contrário de Lula, começou a cercar-se, nos governos que se seguiram e nos quadros do partido, de figuras talvez de segundo escalão, ou quando tentou reduzi-las a meros capachos do chefe. Isso nunca leva ao sucesso, e sim ao fracasso.

Lembro-me a este respeito, quando, há mais de 40 anos, a ditadura havia acabado e a democracia era inaugurada, o diretor e fundador deste jornal, Juan Luis Cebrián, no momento de recrutar jornalistas para formar a nova equipe, deu uma missão: “Quero os melhores do mercado”. O general Franco, ditador e caudilho, acabava de falecer. Os 40 anos de ditadura, os tempos de censura e uma Espanha fechada ao exterior não deixaram muitas possibilidades para a formação de novos quadros de jornalistas. No entanto, a resistência havia forjado um grupo de profissionais com garra e vontade de poder agir em liberdade. E foi entre estes que Cebrián os escolheu. A história dos mais de 40 anos de vida deste jornal e hoje sua dimensão e reputação globais revelam, melhor do que nada, que aquele jovem diretor de 31 anos estava certo ao querer estar rodeado dos melhores.

Analisem a história do governo brasileiro no último meio século e vejam que os momentos de maior êxito, em que os horizontes se abriram na economia, nas relações exteriores, na cultura e na defesa dos direitos humanos, foram aqueles em que os responsáveis pela liderança da República não temeram estar rodeados dos melhores e mais preparados.

Todos os grandes líderes mundiais, em todas as áreas, aqueles que fizeram história, estiveram abrigados pelo melhor de seu tempo e nunca temeram ser ofuscados. Somente os medíocres têm medo de estarem rodeados daqueles que possam saber mais do que eles.

Quando soubermos os nomes e biografias de todos os ministros do novo Governo de extrema direita, saberemos se Bolsonaro não teve medo de ter por perto personagens inquestionáveis em seu conhecimento na área que irão comandar, ou se retomará a velha prática de não nomear os melhores, e sim atender às demandas de compromissos espúrios. Quem serão, por exemplo, os ministros da Educação, da Cultura e de Relações Exteriores, três cargos-chave de qualquer Governo que pense mais na sociedade do que em seus pequenos interesses de poder ou ideológicos? Em breve saberemos.