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Quando os políticos querem atrapalhar a democracia

Por Thiago Medeiros*

Democracia em risco, democracia em perigo, como as democracias morrem. Falas como essas são assustadoras em relação às expectativas que se tem com este modelo de organização política que já conta com mais de dois séculos – isto se formos considerar a república norte-americana como um marco na recuperação do evento de curta duração que foi a democracia em Atenas, no século V a.C.

A realidade é que temos a impressão que as turbulências parecem caminhar juntas com a democracia (assim como as crises parecem perseguir o capitalismo), e muito dificilmente poderíamos supor que isto não viesse a ocorrer. As primeiras tentativas de estabelecimento do princípio democrático de governo já distribuíam evidências da dificuldade de acordo em relação às demandas, os radicalismos, as aspirações e vontades insatisfeitas principalmente daqueles que são governados. Aceitar que haja uma distribuição igualitária de bom senso e equilíbrio não é exatamente uma coisa fácil.

O tema está posto na mesa, aparece com amplitude exagerada na mídia e mobiliza países em várias partes do mundo. Para alguns, o EUA se livrou desse “perigo” ao eleger Biden como presidente, por lá tudo se acalmou. Para alguns, o Brasil está ocupando um lugar de destaque neste quesito. Vários pesquisadores defendem que o foco era sondar a satisfação com a democracia e a profundidade da crença nos valores democráticos. A insatisfação à Democracia segundo pesquisa publicada pelo Pew Research Center (2020), é atribuída ao modo como a democracia tem funcionado, mas, em especial, ela tem a ver com a frustração com as elites políticas. A pesquisa foi realizada com amostras de entrevistas pessoal e também via telefone.

Vamos focar no Brasil…

A pesquisa da Pew Research Center, ressalta que apenas 36% dos brasileiros aceitam os partidos de oposição, enquanto a média global é de 54%. Esta é a maior discrepância do Brasil com relação à média global e por isso vale ser avaliada. Este desgosto em relação aos partidos de oposição pode dizer respeito a um entendimento de que a oposição opera de modo contundente na direção de apresentar somente os lados negativos? A sensação pode ser a que não existe uma oposição construtiva no País. Aquele que não está no poder joga no time de quanto pior melhor. De fato, gera-se muita confusão se esse negativismo estaria ligado à um alerta para melhorar alguma coisa ou se é pura demagogia, em momentos como este de Pandemia o alerta precisa ficar ainda maior.

Um grande estudioso da política brasileira, o professor de Harvard, Scott Mainwaring avalia que “a democracia brasileira sofre alguns riscos, não de uma quebra, mas de um processo lento de pequenas degradações”. Antes de tudo, vale ressaltar que para o professor, os riscos são inerentes às ideologias, podem ser de esquerda ou direita, que estejam exercendo o poder.

O populismo pode ser considerado como a principal ameaça à democracia na atualidade. “O populismo impõe a ideia de que o líder representa a nação, de modo que quem é contra ele é inimigo do povo. Essa ideologia iliberal não entende que a oposição é legítima, democrática”, explica Scott.  Para alguns, Bolsonaro introduz um populismo à direita na América Latina, e para defesa dessa tese se considera a definição que populistas governam como se estivessem em uma eterna campanha eleitoral, propondo políticas públicas inconsistentes e financeiramente insustentáveis. Desse ponto de vista, Bolsonaro é uma referência de populismo, principalmente no que toca à economia. Porém, o grande perigo ao usar este termo de referência é uma comparação desproporcional com outros populismos que vemos na própria América Latina, como exemplo na Venezuela. Veremos se essa tese se sustenta na condução da aprovação do orçamento de 2021.

Temos sinalizações que nossa Democracia pode estar sofrendo danos, porém longe do que hoje principalmente a grande mídia tem pregado, a utilização do termo Golpe tem uma exacerbação contundente por parte da oposição, mas sem fatos concretos para sustentá-los, essa narrativa tem principalmente se sustentado em distorções da realidade. Fiquemos em alerta, pois principalmente esta mega polarização política será incapaz de produzir bons frutos para nossa nação, a nossa Democracia não dormirá tranquila, enquanto vivermos num clima de ataques políticos, que se refletem numa guerra eleitoral constante.

*É publicitário e sociólogo.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

 

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Juíza derruba censura prévia na UFERSA

A juíza substituta da 9ª Vara Federal de Mossoró Lianne Pereira da Motta Pires Oliveira concedeu liminar suspendendo os efeitos da Portaria 008 do Gabinete da Reitoria da Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA) que estabelecia censura prévia nas solenidades de colação de grau.

O objetivo era impedir que membros da comunidade acadêmica emitissem manifestações de opinião dentro de um contexto em que há uma revolta interna porque a reitora Ludmilla Oliveira foi nomeada pelo presidente Jair Bolsonaro após ter ficado em terceiro lugar na consulta à comunidade acadêmica.

A magistrada entendeu que a Portaria fere os preceitos democráticos. “Mais do que uma liberdade individual, a livre expressão do pensamento constitui pilar do Regime Democrático, representando, ao mesmo tempo, sua própria manifestação e um instrumento de sua formulação. Em outras palavras, não há Democracia sem que o povo possa expressar livremente seu pensamento, e não há liberdade de manifestação sem Democracia, porquanto essa mesma liberdade possibilita que a vontade popular seja constituída pelo confronto de ideias e opiniões de todos os cidadãos, das mais variadas origens, grupos sociais, crenças e níveis de formação acadêmica. É com fundamento em tais premissas que se deve analisar o pleito liminar formulado na presente ação coletiva”, declarou.

Na decisão ela determina dentre outras coisas que o chat do Youtube fique disponível para que as pessoas possam se manifestar.

Nota do Blog: a reitora ao topar ser nomeada nestas condições deveria ter a ciência do ônus disso. Ela precisa construir pontes, mas prefere acirrar ainda mais os ânimos.

Leia a decisão

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Pró-tempore do IFRN processa reitor eleito e jornalista

Josué Moreira quer reparação de imagem (Foto: web/autor não identificado)

O reitor pró-tempore do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) Josué Moreira (PSL) está processando o reitor eleito da instituição José Arnóbio Araújo Filho e o jornalista Rafael Duarte, editor da Agência Saiba Mais.

Na ação Josué pede indenização de R$ 10 mil “a título de imagem” pela matéria “Ocorreu um golpe dentro da eleição, diz reitor eleito e impedido de tomar posse no IFRN” publicada no site da Agência Saiba Mais.

“Além de censura, a ação é um ataque direto à liberdade de imprensa e de expressão. Arnóbio Araújo foi entrevistado na ocasião para comentar a nomeação pelo Ministério da Educação de Josué de Oliveira Moreira para o cargo de reitor, contrariando o resultado do processo eleitoral realizado em dezembro, quando o candidato mais votado foi o próprio Arnóbio”, diz a Agência Saiba mais ao se pronunciar sobre o caso.

Josué Moreira se tornou reitor ao arrepio das práticas democráticas. Ele sequer disputou as eleições realizadas em dezembro e sua nomeação está sendo questionada por ações populares de alunos e professores além de estar sob investigação do Ministério Público Federal.

Nota do Blog: por princípio entendemos que todo cidadão tem o direito de processar jornalistas ou veículos de imprensa caso se sintam atingidos. Mas no caso desta ação a medida de Josué é claramente para intimidar Arnóbio e Rafael Duarte. Logo manifesto minha solidariedade.

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Como Bolsonaro e os homens ocos estão matando a democracia

Bolsonaro dando risada
O presidente Jair Bolsonaro (Adriano Machado/Reuters)

Por Reinaldo Azevedo*

Jair Bolsonaro é um homem que não tem receio de trazer a público as suas ignorâncias, exercitando, a seu modo, a modéstia intelectual socrática sintetizada no “só sei que nada sei”. Estreou no mundo dos estadistas indagando: “O que é golden shower?”. E continua a sua saga em busca da iluminação: “O que é PIB?”.

Entre uma pergunta e outra, tentou depor o governa nte de um país vizinho; mandou comemorar o golpe de 1964; abriu guerra contra a imprensa independente; deu apoio a sucessivas manifestações da extrema direita xexelenta contra o Congresso e o Supremo; emprestou suporte moral a um motim de policiais fardados e armados; promoveu, por vias oblíquas, agitação nos quartéis dasForças Armadas…

Insaciável, transformou em cinzas o que havia de positivo na política ambiental brasileira, espantando os investimentos; criou toda a sorte de dificuldades para a aprovação da reforma da Previdência, que só avançou porque lideranças do Congresso, Rodrigo Maia em particular, tomaram a tarefa para si; conferiu ares de política de Estado à homofobia, à misoginia e à intolerância.

E não é, meus caros, que nem assim o Brasil acabou? Segundo querem alguns, tudo segue na mais absoluta normalidade, com as instituições funcionando plenamente. Não fosse a estridência da imprensa, asseveram esses realistas, os ânimos não estariam tão exaltados. Os bêbados de tanta luz (também de luz…) asseguram que esse negócio de marcha em favor do normal das democracias. É? Um outro exemplo, por favor… Adiante.

Aqui e ali —e até aqui, nesta Folha—, leio raciocínios que poderiam ser assim sintetizados: “Olhem essa imprensa catastrofista! Fica anunciando o desastre, o abismo, e depois nada acontece. Tudo se normaliza, e o Executivo e o Legislativo, por exemplo, fazem acordo sobre emendas impositivas”. É mesmo?

Faltou uma epígrafe nos livros “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, e “O Povo Contra a Democracia”, de Yascha Mounk. Façamos nós o que os autores não fizeram: “This is the way the world ends/ Not with a bang but with a whimper”, de T. S. Eliot. “Assim acaba o mundo, não com um estrondo, mas com um gemido”.

Nota rápida: invoco com esse “gemido” das traduções — em algumas, “suspiro”. Cria-se a antítese com “estrondo”, mas se perde o fato de que “The Hollow Men” (“Os Homens Ocos”) aponta não o fim do mundo, mas o fim de uma perspectiva civilizatória, também por culpa nossa. A palavra menos poética “lamúria” — as vozes sussurradas dos que apenas reclamam — traduz melhor o sentido do poema.

Abro esta coluna com “Jair Bolsonaro” e chego a Eliot. É uma pequena contribuição à causa da civilização. Explico-me. O presidente da República não precisa dar um autogolpe para corromper a democracia — até porque, nessa hipótese, democracia não haveria mais. Também não é necessário que tanques cerquem o Supremo e o Congresso para que os Poderes da República se transformem em “Fôrma sem forma, sombra sem cor/ Força paralisada, gesto sem vigor”.

É precisamente ao som de lamúrias que as democracias podem morrer. Sob o estrondo dos canhões, armar-se-ia necessariamente a reação. À medida que as garantias do regime vão sendo solapadas por dentro, formam-se derivações teratológicas do que, na superfície, ainda se pode chamar de “regime democrático”, embora, em essência, seja terra morta.

A democracia não é uma teoria administrativa ou um método de tomada de decisões. Fosse assim, não seria o melhor dos piores regimes, o pior dos piores. Acima de tudo, ela se realiza como a afirmação de um conjunto de valores e de garantia de direitos — muito especialmente os das minorias — a proteger os indivíduos do Leviatã estatal e das milícias armadas. Não é o golpe que nos ameaça, mas a desordem que, ao esmagar a esperança, tende a eternizar a injustiça, a brutalidade e a estupidez, com seu pibinho de 1,1% que soterra os pobres e que mata os pretos de susto, de bala ou vício.

O que é PIB, Jair Bolsonaro?

*Texto extraído da Folha de S. Paulo.

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Como um governante se sente à vontade para banir Kafka e Machado de Assis?

Por Rodrigo Casarin

A notícia: a Secretaria de Educação de Rondônia preparou um documento apontando mais de 40 livros que deveriam ser retirados das bibliotecas de escolas púbicas da cidade porque seriam impróprias para os jovens. No índex, títulos como “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis”, “Poemas Escolhidos”, de Ferreira Gullar, e “O Castelo”, de Franz Kafka. O governo estadual negou. Professores disseram que já tinham sim recolhido alguns volumes. A caça aos autores existiu. Deu-se o imbróglio e, aparentemente, os censores voltaram atrás. O governador de Rondônia é Marcos Rocha, do PSL, adorador de Bolsonaro.

Escrever o quê? Que a arte está sendo perseguida? Bato nessa tecla há três anos. Que a censura já encontrou seu caminho para vigorar no país? Também não é novidade por aqui. Que é um absurdo tudo isso que está acontecendo? E quem se importa, além de um milhão ou outro num país com mais de 200 milhões? É tanto descalabro para tudo que é lado que anda difícil ser minimamente original.

Mas fui dormir com a seguinte pergunta: o que leva alguém a se sentir à vontade para censurar até os clássicos? O que leva um governante a achar razoável dizer para os colegas: “Vamos banir uns livros aí? Um nome ou outro só. Mário de Andrade, Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony, Rubem Fonseca – este é bem perigoso, tem que dar fim em quase tudo que encontrar dele -, Euclides da Cunha… Tem também uns nomes estranhos, Kafta, Kafka, sei lá, Allan Poe… Vamos banir. Ah, e o Machado. Tira o Machado das estantes, parece que ele era comunista”. Daí o outro tosco retruca: “Pô, que boa ideia. Vamos fazer isso sim, talquei?”

Bem, andam se sentido confortável principalmente porque a imensa maioria das pessoas não está nem aí para nada que vá além do próprio umbigo. E o próprio umbigo é: “Isso vai mudar meu dia? Não? Então dane-se. E daí que não pode mais estudante ler livro de defunto autor? Nem sabia que morto escrevia”. No boteco da esquina, ninguém dá a menor bola para o que está acontecendo. Há inúmeras razões para isso, claro, mas a consequência está aí: o povo paralisado enquanto o Brasil toma um caminho assustador. E mesmo os que se importam, os que de alguma forma reagem, dificilmente levantam a bunda para tal: é resistência pela internet ou nada.

Dessa vez voltaram atrás. Na próxima – que virá –, talvez não voltem. Vamos tuitar que tudo é um grande absurdo, que o Brasil está perdido. Até que alguém proponha, e talvez emplaque, algo ainda mais estúpido.

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Presidente corta fala de vereador que questionava legalidade de projeto

A presidente da Câmara Municipal de Mossoró Izabel Montenegro (MDB) cortou a fala do vereador Alex do Frango (PMB) no momento em que num aparte do discurso do vereador Raério Araújo (Republicanos).

Na ocasião, Alex mostrava que ao dar o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) a prefeita Rosalba Ciarlini (PP) na prática fazia uma antecipação de receitas cujo prazo para pagamento é até o fim do mandato dela.

Confira o vídeo

Na sequência, Izabel justificou que Raério já tinha extrapolado o tempo de discurso e que apartes só podem durar um minuto.

Confira o bate-boca no segundo vídeo:

Nota do Blog: quem acompanha as sessões da Câmara sabe que quase todos os discursos extrapolam o tempo regimental. A postura de Izabel foi autoritária porque Alex do Frango trazia um argumento técnico e ela não costuma fazer isso em outras ocasiões.

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Bolsonaro bloqueia deputada do RN em rede social

A deputada federal Natália Bonavides (PT/RN) foi bloqueada no Twitter do Presidente Jair Bolsonaro, na noite de ontem (23). Em virtude das críticas feitas ao presidente sobre a falta de preocupação dele em lidar com a grave situação das queimadas na região Norte do país, a parlamentar potiguar não pode mais interagir nas postagens do Twitter de Bolsonaro, que tem sido um canal oficial de pronunciamento do presidente.

“Nossa página no Twitter ficou impedida de falar diretamente com o perfil do presidente, em mais uma demonstração da incapacidade que ele possui para lidar com críticas. No momento em que nossas florestas estão queimando, Bolsonaro prefere ignorar quem denuncia seu autoritarismo e seu entreguismo”,  declarou Natália.

Antes mesmo de tomar posse, Bolsonaro impediu o acesso de diversas pessoas ao seu perfil do Twitter. Esta mesma postura, que já foi tomada pelo presidente Donald Trump e considerada ilegal pela justiça americana, também não está de acordo com a legislação brasileira. Como Bolsonaro utiliza sua rede para anunciar ações do governo, ele precisa permitir o acesso das cidadãs e cidadãos ao seu perfil, sob pena de descumprir o princípio da publicidade e o direito de acesso à informação.

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Quando todos somos fascistas

Por Daniel Verdú

El País

Você é um fascista. E o seu vizinho. E também muitos dos manifestantes do último Dia do Orgulho Gay em Madri, segundo a deputada catalã Inés Arrimadas. E as pessoas do município espanhol de Alsasua que gritavam contra políticos do partido Cidadãos. Mas também os militantes do Vox e seus dirigentes, e Matteo Salvini e suas hordas da Liga Norte. Isso sem contar os que declararam a independência no Parlamento da Catalunha em outubro de 2017, os novos partidos que reivindicam Mussolini na Itália e os que dirigem seus veículos pelas cidades sem respeitar as ciclovias. Nenhuma palavra foi tão utilizada nos últimos tempos para desqualificar rivais de todo tipo, para refletir um autoritarismo crescente ou para definir, recorrendo ao passado de forma cansativa, um aroma político que emana do presente e cujas características se repetem no mundo todo sem uma resposta adequada.

O irresistível magnetismo de um período histórico em que alguns, como Umberto Eco, decifraram um estado de ânimo político e moral em permanente retorno tomou conta também do setor editorial. Quase uma dezena de novidades que abordam a questão acabam de chegar às livrarias e indagam sobre suas raízes, personagens e paralelismos com o momento atual. A Itália lidera a tendência com o maior catálogo de propostas, em meio aos rumos autoritários e xenofóbicos do Governo formado pela Liga e o Movimento 5 Estrelas. A obra mais festejada é M. Il figlio del secolo (M., o filho do século), com a qual Antonio Scurati venceu recentemente o Prêmio Strega. Uma extraordinária biografia romanceada sobre a ascensão ao poder de Benito Mussolini – pensada como a primeira parte de uma trilogia que também dará origem a uma série da TV – que triturou definitivamente o tabu de narrar os acontecimentos mais obscuros da primeira metade do século XX do ponto de vista dos carrascos. Certo, mas existem realmente semelhanças entre aquele período e o atual para justificar tanto furor?

Manifestação de ultradireitistas em Roma.
Manifestação de ultradireitistas em Roma.FABIO FRUSTACI (CAMERA PRESS)

Scurati, em plena ressaca pelo prêmio mais importante da Itália (a Alfaguara publicará o livro em janeiro na Espanha), encontra alguns paralelismos em aspectos muito concretos localizados no clima em que o monstro foi forjado. “A analogia mais forte está no sentimento de derrota, mal-estar, abandono, desilusão, rechaço e repulsa à velha classe dirigente e às instituições parlamentares. Também o fracasso da social-democracia de 1919 até 1921, um cenário em que o fascismo encontrou terreno fértil. Esse tipo de sentimento antipolítico, que nada tem a ver com a análise racional de nossa vida, é análogo. Volta a ser detectado, como na época, em elevadas porcentagens do eleitorado. Afeta pais de família, trabalhadores, gente de bem atraída por líderes e movimentos que manifestam abertamente o desprezo pela velha política, mas também pelas instituições parlamentares. A diferença é a violência, nisso não tem nada a ver”, afirma o autor.

Uma pequena burguesia não integrada a nenhuma classe ou grupo social, assustada pela percepção de uma invasão estrangeira; partidos que invocam atalhos extraparlamentares e dão as costas às Câmaras num clima de decomposição; e uma crise econômica incrustrada, que solapou a base da população. Esse clima é sentido há anos no Ocidente e chega até o Brasil, onde Jair Bolsonaro, um capitão reformado do Exército, ressuscita o autoritarismo e defende a tortura e a ditadura militar. Também alcança os Estados Unidos da era Trump: personagens como Steve Bannon declaram seu amor a intelectuais que deram cobertura ao fascismo, como Julius Evola. Por isso, a secretária de Estado do Governo de Bill Clinton, Madeleine Albright, portadora de extensa quilometragem diplomática, alerta com seu Fascismo: Um Alerta (Crítica) que o monstro “não é uma etapa excepcional na humanidade; faz parte dela” e se apresenta atualmente com rostos diferentes. Putin, Erdogan, Kim Jong-un…

“A maior analogia está no rechaço às instituições parlamentares. A diferença é a violência”

Todos fascistas, então? Scurati, como a maioria dos intelectuais consultados, denuncia um abuso que gerou o efeito contrário. “Muitos eleitores desses movimentos antissistema, gente integrada na sociedade, reagem também contra o antifascismo porque durante muito tempo ele foi usado de forma irresponsável. Quem quer que fosse de direita era chamado de autoritário, rotulado de fascista. Isso é inexato e já fez com que o antifascismo, abusado e defendido por gente que não conhecia seu verdadeiro significado, acabasse sendo uma arma equivocada para a democracia.”

A questão incendeia qualquer debate entre historiadores, com frequência divididos como a própria sociedade. A maioria concorda, porém, que o mundo não tomou a real consciência do fascismo e não fechou esse capítulo como aconteceu com o nazismo. Emilio Gentile, o maior especialista italiano nesse período, acaba de publicar Quien Es Fascista (quem é fascista). Um título provocador que aborda com todas as letras a superexposição do conceito e a languidez semântica que seu repetitivo eco traz aos relatos e à vida diária. “Esse abuso denota um não entendimento do que foi o fascismo realmente. Aplica-se a personagens com os quais não estamos de acordo, que não nos agradam. Mas não é novo: aconteceu nos últimos setenta anos. Foi aplicado a Eisenhower, Mao, Stálin… Palmiro Togliatti [secretário-geral e fundador do Partido Comunista Italiano] chegou a definir como fascista Carlo Rosselli, que criou o movimento antifascista Justiça e Liberdade. Mas os fenômenos de hoje não têm nada a ver com o fascismo.”

Gentile, extraordinário historiador e um tanto radical nesse campo, acredita que não há nada de novo a contribuir com o estudo do fascismo e que a banalização do termo, transformado em objeto de consumo, já é insuperável. O fascismo pode voltar? “Sim, claro. Como também podem voltar o bonapartismo, o jacobinismo… Estamos usando um termo de maneira inadequada para explicar fenômenos novos. E o erro responde principalmente à incapacidade de enfrentar, com olhar crítico atual, assuntos contemporâneos”, afirma. “A raiz se encontra na falta de uma etimologia precisa, como têm o comunismo e o liberalismo: fascismo só significa agrupar. E hoje se transformou num insulto para prepotentes, antissemitas, autoritários… Mas nenhum populismo atual que invoque o princípio de soberania popular pode ser fascista. O fascismo negava tudo o que derivava da Revolução Francesa. E se o que estamos falando é de nos identificarmos com a figura de um homem forte, de alguém que se dirija diretamente ao povo, então também poderíamos dizer que [o político italiano] Matteo Renzi é um fascista, não acha?”

Uma seguidora de Matteo Salvini durante um comício.
Uma seguidora de Matteo Salvini durante um comício.ALESSIO PADUANO / REDUX

A origem do termo encontra-se no símbolo romano do fascio (feixe de varas), por sua vez herdado dos etruscos. Os fasci simbolizavam a unidade da soberania, da ordem e do poder supremo capaz de conceder justiça. O mesmo símbolo foi depois usado na Revolução Francesa, na estátua de Abraham Lincoln em Washington e na marca da própria Guarda Civil Espanhola. Um dos primeiros movimentos sociais modernos que o empregaram foram os Fasci Siciliani entre 1891 e 1894: um grupo de inspiração libertária, democrática e socialista de agricultores que defendia seus direitos trabalhistas. Mas a apropriação definitiva chegou em 1919 com os Fasci Italiani Combattimento, fundado por Benito Mussolini em 23 de março de 1919, verdadeira gênese da mudança. Em parte por essa dispersão, por sua difusão pela esquerda e a direita do espectro ideológico, muitos encontram legitimidade para usá-lo nos dias de hoje.

Um grupo de escritores, como Sandro Veronesi e Roberto Saviano, transformou a militância contra Matteo Salvini em parte de seu corpus literário e ensaístico na Itália. No extremo oposto à restrição do termo de Gentile, encontra-se também Michaela Murgia, autora de Instrucciones para Convertirse em Fascista (instruções para se transformar em fascista), um dos sucessos do ano na Espanha. É uma sorte de falso manual construído com ironia e provocação para denunciar a infiltração total do fascismo na sociedade. Sem nuances. Banalização? “Não acho. É uma maneira de recordá-lo. Não é um fenómeno histórico, mas diacrônico. Apresenta-se com formas diferentes, mas métodos iguais. Chame-o do nome que quiser, mas ele tem o mesmo impacto. Ninguém pensa que os Camisas Negras [milícia paramilitar italiana] voltarão, mas me preocupa que Salvini, por exemplo, dê entrevistas vestido de militar sem estar numa base militar.”

Murgia considera que há três elementos fundamentais que permitem pensar num terreno propício, político e moral, similar ao que levou àquele período. “Em primeiro lugar, a relação que o Ministério do Interior italiano e seus potentes apoiadores mantêm com a dissidência (lembremos do dramaturgo italiano Gabriele D’Annunzio, considerado por muitos como um dos precursores do fascismo, gritando contra o Parlamento). “Quem manifestar uma opinião contrária é atacado nas redes sociais do ministro e recebe uma avalanche de ameaças e insultos”, diz ela. “Os intelectuais estão na mira, mas também os cozinheiros do Master Chef e os DJs que o criticam. Se você expressa sua opinião contra ele, passa a ser seu adversário. Em segundo lugar, o questionamento sobre os outros poderes do Estado: ele se recusa a ser julgado e diz que os juízes estão politizados. Mas quando o Poder Executivo deslegitima o Judiciário, estamos ante um ato contra a Constituição. E, terceiro, o machismo de Estado. Salvini tende a recuperar modelos sociais superados: Deus, pátria e família. Ataca as mulheres publicamente. Contra elas dirige a violência mais forte.”

Murgia é autora também de um polêmico fascistômetro publicado no semanário L’Espresso. Um experimento que poderia remontar à Escala F, um teste de personalidade desenvolvido por Theodor Adorno para detectar traços autoritários (o F é de fascismo) e que funciona como uma espécie de j’accuse psicológico ao fascista que luta para sair de dentro de cada um de nós: todos sob suspeita. Uma ideia também transmitida pelo livro Como Funciona o Fascismo (L&PM Editores), de Jason Stanley. A ideia de que novas formas de autoritarismo espreitam nas sombras de nossas estruturas políticas, no entanto, não se sustentaria se não estivesse arraigada nessa fronteira configurada pela perda de sentido da palavra e por um cuidadoso processo de aceitação da sua acepção.

“Estamos usando um termo de maneira inadequada para explicar fenômenos novos”

Na Itália, uma ladainha tenta periodicamente convencer sobre as bondades do ditador. Estradas, trens que chegavam na hora, tratamento das zonas pantanosas, erradicação de doenças. “Mussolini também fez coisas boas”, escandalizou o ex-presidente do Parlamento Europeu Antonio Tajani em março passado. Com esse título irônico e editado pela Bollati Boringhieri, Francesco Filippi se propôs este ano a desmontar todas as fake news construídas ao redor da obra do tirano nascido em Predappio, propagadas principalmente na Internet com impacto sobretudo entre os mais jovens. “O fascismo conseguiu uma presença crossmedia e saltou dos livros de história à web. Este livro [na lista dos 10 mais vendidos há 16 semanas] pretende ser uma espécie de kit de primeiros socorros para curar algumas de suas mentiras, na maioria das vezes não contestadas. Muitos italianos, por exemplo, pensam que Mussolini criou o sistema previdenciário, quando este foi instalado em 1895, ano em que ele tinha 12 anos.”

A revisão sem preconceito daqueles anos, como propõe Scurati, gera tensões. No último Salão do Livro de Turim, vários títulos disputavam a atenção do público. Altaforte, uma editora próxima do partido declaradamente fascista CasaPound, aterrissou com uma obra biográfica sobre Matteo Salvini e foi expulsa do evento. Não fosse assim, a polêmica teria sido ainda maior: convidados como a sobrevivente de Auschwitz Halina Birenbaum ameaçaram abandonar o evento. Uma decisão razoável. Ideal também para atacar inocentes e jogar na cara de seu diretor, Nicola Lagioia, a frase atribuída a Winston Churchill: “Os fascistas do futuro chamarão as si mesmos antifascistas.” “Foi algo interessante. O Salão do Livro não praticou a censura excluindo a Altaforte. Sempre houve editoras de extrema esquerda ou direita. O fato não era a livre circulação de ideias; o problema era que [a editora] é muito próxima de um movimento político que não entendemos realmente até que ponto é legal. Depois começaram a dizer que o antifascismo era o câncer da cultura italiana”, diz ele.

A digestão literária do fascismo, consideram Lagioia e muitos outros intelectuais, não foi concluída. “Houve uma literatura antifascista importante nos anos cinquenta, mas seus autores foram marginalizados. Após a queda do fascismo, de repente ninguém na Itália tinha sido fascista. Por esse motivo, existe agora uma geração que questiona essa história. Na Espanha, Javier Cercas, Javier Marías e Fernando Aramburu têm se debruçado sobre o passado. Existe uma fornada de escritores após o franquismo que o reflete. Tolstói falou em Guerra e Paz sobre as campanhas napoleônicas muitos anos depois de ocorrerem. Agora é a vez das novas gerações se voltarem a esse passado. Fora essa questão… sim, pode ser que haja também uma moda editorial.” Enquanto isso, e até a poeira baixar, você poderia continuar sendo um fascista.

LEITURAS

Quem é fascista. Emilio Gentile. Tradução de Carlo A. Caranci. Aliança, 2019. 224 páginas. 8,90 euros.

Instruções para converter-se em fascista. Michela Murgia. Tradução de Ana Ciurans. Seix Barral, 2019. 150 páginas. 15 euros.

Facha. Como funciona o fascismo e como entrou em tua vida. Jason Stanley. Prólogo de Isaac Rosa. Tradução de Laura Ibáñez. Blackie Books, 2019. 240 páginas 18,90 euros.

Anatomia do fascismo. Robert Ou. Paxton. Tradução de José Manuel Álvarez. Capitão Swing, 2019. 424 páginas. 24 euros.

Fascismo. Madeleine Albright. Tradução de María José Velho Pérez. Paidós, 2018. 352 páginas 22,90 euros.

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Artista recebe recomendação para não “dar corda” a manifestações contra Bolsonaro na Cidadela sob pena de ter o som desligado

Ontem quem animou a noite no palco 1 da Cidadela foi a banda Luísa e os Alquimistas, conhecida por ter uma postura antifascista. Antes do início do show, Luísa foi orientada pela organização do Mossoró Cidade Junina para não “dar corda” a manifestações contra o presidente Jair Bolsonaro (PSL).
Conforme o Blog checou com pessoas ligadas à banda, o recado foi bem claro: se não seguir a recomendação o som seria desligado.
A iniciativa teria sido da servidora identificada como “Wida” que alegou se tratar de uma determinação da prefeita Rosalba Ciarlini (PP).
A preocupação surgiu porque minutos antes no final do show da primeira atração da noite foi puxado o coro “ai ai ai Bolsonaro é o carai (sic)”.
Apesar da recomendação no final do show teve manifestação contra Bolsonaro com endosso da atração.
O Blog do Barreto fez contato com a Assessoria de Comunicação da Prefeitura de Mossoró que informou existir uma orientação para não ter manifestações políticas nem para um lado nem para o outro.

Nota do Blog: manifestação política só se for a favor da prefeita como aconteceu no show de Alceu Valença no último final de semana.

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Bolsonaro (des)governa o Brasil pelo Twitter

Bolsonaro na posse (Foto: Sérgio Moraes)

Por Eliane Brum*

El País

Em apenas dois meses de Governo, o Brasil se tornou o laboratório do novo autoritarismo. Jair Bolsonaro mostrou que pretende governar não por planejamento nem por projetos, não por estudos e cálculos bem fundamentados nem por amplos debates com a sociedade, mas sim pelos urros de quem pode urrar nas redes sociais. O presidente já fritou pelo menos um ministro e tomou decisões a partir da reação de seus seguidores. Se Donald Trump inaugurou a comunicação direta com os eleitores pela internet, na tentativa de eliminar a mediação feita por uma imprensa que faz perguntas incômodas, seu autodeclarado fã brasileiro deu um passo além. Vende como democracia o que é corrupção da democracia. Governa não para todos, mas apenas para a sua turma.

Os três filhos, também políticos profissionais, que ele chama de 01, 02 e 03, fazem o serviço de expressar a vontade do “Pai”, que eles tratam assim, com letra maiúscula. Se no Governo oficial há um ministério oficial, no cotidiano informal da internet o Governo é familiar. A bolsomonarquia digital se mostra seguidamente mais real – e também mais efetiva.

O presidente confirma e legitima o anúncio de seus “garotos”, como ele chama sua prole masculina, com um retuíte. Especialmente os de 02, Carlos Bolsonaro, vereador do Rio, também conhecido como o “pitbull” do pai. A prole feminina, como Bolsonaro já nos informou, com a elegância habitual, é resultado de uma “fraquejada”.

Foi assim quando Gustavo Bebianno, então ministro da Secretaria Geral da Presidência e parceiro de primeira hora da candidatura de Bolsonaro, estava enroscado com o laranjal do PSL. Bebianno deu uma entrevista ao jornal O Globo afirmando que não havia “crise nenhuma” no Governo por conta das denúncias envolvendo o partido que presidiu interinamente durante a campanha eleitoral. Para provar, afirmava que havia falado com Bolsonaro três vezes naquele dia.

O filho 02 tuitou que era “mentira absoluta” do então ministro. O pai do garoto, que por coincidência é presidente da República, retuitou. Bebianno vazou os áudios das conversas, desmentindo Bolsonaro. Ele de fato tinha falado com o presidente três vezes naquele dia. Quem mentia era Bolsonaro. Mesmo contra a vontade da ala militar do ministério, cada vez mais numerosa, Bolsonaro atendeu ao clamor e demitiu Bebianno oficialmente, depois de tê-lo fritado no Twitter. Esta é a seriedade com que a bolsomonarquia trata a administração pública.

O “superministro” Sergio Moro descobriu-se menos super na semana passada. Tratado como herói por sua atuação na Operação Lava Jato, Moro foi pressionado pelo presidente a “desconvidar” Ilona Szabó, diretora-executiva do Instituto Igarapé, como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Szabó é uma reconhecida especialista na área da segurança, mas os seguidores de Bolsonaro a consideram “esquerdista”. Aparentemente, eles entendem que um conselho deve ter pessoas que pensam igual, porque daí não é preciso se dar ao trabalho de debater e apresentar dados consistentes para fundamentar as escolhas. Os conselheiros apenas confraternizam, dividem um pão com leite condensado, tomam um café no copinho plástico ecológico.

A capacidade cognitiva dos seguidores de Bolsonaro, porém, o país e o mundo já conhecem. O impressionante foi Moro ter cedido. E mostrado à população que não tem nem mesmo o mini poder de nomear uma suplente sem ter a aprovação da prole de Bolsonaro e sua turma. Assim que o ministro da Justiça anunciou o vexatório recuo, o 03 tuitou: “Grande dia”. Aparentemente, os garotos adoram a hashtag #GrandeDia”.

Bolsonaro sabe que não é inteligente nem preparado, sabe que sua relação com o Congresso é precária e sabe também que uma parcela de seus ministros e das forças de direita que o apoiaram já está horrorizada com a vulgaridade de sua família no poder. Não significa que estes apoiadores desaprovem a violência. Apenas que prezam as boas aparências. É a estética da bolsomonarquia que os horroriza. E não a ética.

Como quando o presidente diz ao ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que está preocupado em ter que pagar os honorários do ex-amigo Bebianno, que era seu advogado em ações na Justiça. “Se ele me cobrar individualmente o mínimo, eu to f… Tem que vender uma casa minha no Rio para pagar”. O republicano diálogo do presidente da República com o ministro-chefe da Casa Civil sobre o recém demitido ministro da Secretaria Geral da República foi vazado numa “ligação acidental” de Onyx a um jornalista de O Globo.

Bolsonaro sabe também que está no meio de diferentes forças que o apoiaram para botar seus projetos de poder no topo da lista de prioridades. E sabe que nem sempre os interesses coincidem, como no caso da transferência da capital de Israel para Jerusalém, que agradaria aos evangélicos, mas desagradaria ao agronegócio. Essas forças precisavam dele para chegar ao poder central —ou para se manter no poder com ainda mais poder do que no passado. Mas não têm apreço pela sua presença no Planalto se sua figura trapalhona e truculenta, com suas crias barulhentas e mal-educadas, começarem a prejudicar os negócios.

Bolsonaro também já sentiu o bafo na nuca do vice-presidente, general da reserva Hamilton Mourão. Todo o capital que dispõe para se manter ativo no jogo, e não apenas uma marionete, é a popularidade nas redes sociais, as mesmas que garantiram a sua eleição. Bolsonaro já mostrou que fará tudo, inclusive ampliar a crise do país, se necessário, para manter esse capital ativo —o que significa manter seus seguidores sentindo-se “representados”.

Poderia ser uma contradição. Afinal, se a situação do Brasil não melhorar, não há popularidade que se mantenha. É preciso perceber, porém, que Bolsonaro faz parte de um fenômeno contemporâneo: as escolhas são determinadas pela fé, não pela razão. É o mesmo mecanismo que faz com que, em 2019, as pessoas decidam acreditar que a Terra é plana ou que achem sentido em afirmar que o Brasil e o mundo estão ameaçados pelo “comunismo” ou que faz o bolsochanceler, Ernesto Araújo, garantir que o aquecimento global é um complô de esquerda.

As eleições e o cotidiano têm sido determinados por uma interpretação religiosa da realidade. A adesão pela fé é um fenômeno mais amplo e não necessariamente ligado a um credo, já que há muitos ateus que se comportam como crentes. E não só na política, mas em todas as áreas da vida. Esta é a marca deste momento histórico.

É o que também explica que, mesmo com dois meses de um Governo em que Bolsonaro disse e desdisse o que disse, seu filho 02 chamou um ministro de mentiroso e a divulgação dos áudios mostrou que quem mentia era o presidente, mesmo com investigações que apontam envolvimento do filho 01 com a corrupção e com a milícia suspeita de ter assassinado Marielle Franco, que mesmo com as denúncias do laranjal do PSL, que mesmo com ministros enrolados com malfeitos, que mesmo com os 24.000 reais de Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama, sua popularidade pessoal ainda é alta. Quase 58% acreditam que Bolsonaro mudará a vida dos brasileiros para melhor, segundo a mais recente pesquisa da Confederação Nacional do Transporte. É comprovadamente o mais desastroso início de Governo das últimas décadas, mas ainda assim Bolsonaro segue popular.

Bolsonaro tenta convencer que se mover pelos gritos dos bolsocrentes nas redes sociais é democracia. Não é. O que Bolsonaro faz prescinde de qualquer instrumento que garanta a vontade da maioria dos brasileiros a partir de processos previstos em lei, com acesso assegurado e aferição confiável. O que Bolsonaro garante é apenas o desejo de um grupo capaz de fazer seus gritos ecoarem na internet, muitas vezes pelo uso de robôs. É justamente o voto que tem sido desrespeitado dia após dia no Brasil de Bolsonaro. Mas, na época em que a verdade se tornou uma escolha pessoal, como respeitar os fatos? Quando a verdade é autoverdade, como fazer a democracia valer?

Se Bolsonaro seguir nesse rumo, e tudo indica que seguirá, o destino da maior economia da América Latina será decidido pela quantidade e volume dos urros dos bolsocrentes nas redes sociais. Nos próximos meses, a experiência brasileira mostrará como o novo autoritarismo vai evoluir no confronto com a realidade. É improvável que os diferentes grupos no poder, com ênfase na turma da farda, vão seguir o caminho vexatório de Sergio Moro.

Mourão, o vice calculadamente aparecido, segue se manifestando sobre tudo para pontuar que existe plano B – ou F de farda. Como ao declarar, sobre o desconvite de Ilona Szabó: “Eu acho que perde o Brasil. Perde o Brasil todas as vezes que você não pode sentar numa mesa com gente que diverge de você. O Brasil perde. Não é a figura A, B ou C. Perde o conjunto do nosso país e nós temos que mudar isso aí”. É desconcertante quando o maior democrata do Governo é um general que já mencionou a possibilidade de “autogolpe”.

Estimulado pelo garoto 02, o pai presidente segue firme no seu desgoverno tuiteiro. Na terça-feira de Carnaval, sentiu-se poderoso o suficiente para abrir fogo no Twitter contra a maior festa popular do Brasil, a mesma que enche o país de turistas. Tentou deletar de um Brasil partido em vários pedaços o que ainda resta de uma identidade comum, esta que mostrou mais uma vez neste Carnaval o quanto pode ser transgressora, contraditória e insurreta. E fazer disso uma potência criadora e uma afirmação da vida, mesmo em meio às ruínas de um país.

O presidente, claro, não gostou do Carnaval mais insurgente dos últimos anos, na qual ele e sua turma viraram sátiras nas ruas. Não há maior potência do que rir do opressor. Com a desonestidade habitual, Bolsonaro escolheu uma cena isolada de um bloco isolado, na qual um homem toca seu ânus e outro urina na sua cabeça. Com a irresponsabilidade habitual, tascou o vídeo no Twitter: “Não me sinto confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades. É isto que tem virado muitos blocos de rua no carnaval brasileiro. Comentem e tirem suas conclusões”.

Como sabe que os bolsocrentes acreditam em qualquer coisa, Bolsonaro tentou convencer os brasileiros que o Carnaval inteiro é assim. Não é. Quem foi para as ruas sabe. Que o presidente do Brasil diga o que disse sobre a maior festa popular do país que foi eleito para governar é mais uma vergonha. Que poste o vídeo que postou no Twitter é mais uma violência entre as tantas praticadas pela bolsomonarquia e sua corte. Menos pela cena, mais pela manipulação de tentar afirmar que ela representa o Carnaval inteiro. Mentira.

O que Bolsonaro não gostou é que a obscenidade do seu Governo foi revelada nas ruas do Brasil. Então precisou encontrar uma outra para encobrir a sua.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista.