A deputada federal Natália Bonavides foi indicada como membro Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, recriada pelo presidente Lula nesta quinta-feira (4), através de publicação no Diário Oficial da União.
A recriação da comissão é uma resposta a demandas e pressão de familiares das vítimas da ditadura militar (1964 – 1985). “E também o cumprimento de uma promessa de campanha do presidente”, complementou Natália Bonavides.
“Pra nós é uma honra integrar essa comissão. Relembramos os heróis e heroínas do povo brasileiro que, por sonharem uma sociedade justa, foram perseguidos e assassinados pela ditadura criminosa que o Brasil viveu após 64. Memória e verdade são direitos nossos, de cada brasileiro. E seguiremos lutando por esse direito”, declarou a parlamentar potiguar.
A publicação inclui três atos: um despacho revertendo a decisão anterior de Jair Bolsonaro (PL) que extinguiu a comissão, outro dispensando os integrantes nomeados pela gestão anterior, e um último indicando os novos membros.
Após a indicação, a deputada Natália lembrou de sua atuação na pauta no Congresso Nacional. “Na Câmara Federal, apresentamos um projeto de lei para proibir homenagens a agentes públicos responsáveis por graves violações de direitos humanos e para vedar a utilização de bens públicos para a exaltação dos atos da repressão do Estado ou ao golpe militar de 1964, além do PL que impede dar o nome de torturadores a prédios públicos”, disse.
A nova comissão
A Comissão, que havia sido extinta no final de 2022, tem a função de reconhecer vítimas do regime militar, localizar corpos desaparecidos e indenizar os familiares dessas pessoas.
“Quando estávamos sob um governo que comemorava mortes, acionamos a Justiça para que a ditadura não fosse comemorada. Também acionamos a Comissão e na Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o governo bolsonarista por usar órgãos públicos para celebrar tortura e morte”, relembrou a deputada federal Natália Bonavides.
Além da deputada Natália, outros três membros foram nomeados: Eugênia Augusta Gonzaga, procuradora da República, retomará a presidência da Comissão; Maria Cecília Oliveira Adão, professora universitária, representará a sociedade civil; e Rafaelo Abritta, civil indicado pelo Ministério da Defesa, completará o grupo.
A nova composição da Comissão também deverá abrir novas frentes de reconhecimento de vítimas, incluindo camponeses e indígenas. Os trabalhos devem começar quando o presidente da comissão convocar os novos membros. Ainda não foi definida a data.
O princípio da democracia destina-se, pois, a amarrar um procedimento de normatização legítima do direito. Ele significa, portanto, que somente podem pretender ter validade legítima leis juridicamente capazes de ter o assentimento de todos os parceiros de direito em um processo de normatização discursiva. O princípio da democracia contém, desta forma, o sentido performativo intersubjetivo necessário da prática da autodeterminação legítima dos membros do direito que se reconhecem como membros iguais e livres de uma associação intersubjetiva estabelecida livremente.
Na lição de Habermas, o princípio da democracia pressupõe preliminarmente e necessariamente a possibilidade da decisão racional de questões práticas a serem realizadas no discurso, da qual depende a legitimidade das leis.
Para Habermas, é equitativa a ação quando a sua máxima permite uma convivência entre a liberdade do arbítrio de cada um e a liberdade de todos conforme uma lei geral.
Na democracia há a permanente realidade dialógica. No totalitarismo rompe-se o diálogo, aniquilam-se as liberdades. Desconhecem-se direitos.
Comentando o mesmo princípio da Constituição da República portuguesa, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira oferecem aos estudiosos, uma resposta: “Esse conceito – que é seguramente um dos conceitos-chave da CRP – é bastante complexo, e as suas duas componentes – ou seja, a componente do Estado de direito e a componente do Estado democrático – não podem ser separadas uma da outra. O Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de direito. O Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é democrático”.
Os estudiosos veem o conceito de Estado de Direito como uma coloração nitidamente germânica. Ali foi que, após duas guerras mundiais sangrentas, e um desrespeito flagrante aos direitos humanos, que o conceito se sedimentou com maior rigor.
O Estado de Direito é o oposto do Estado de Polícia. É de sua essência, pois, a submissão da atuação do Estado ao direito, do que defluirá a liberdade individual, e o repúdio à instrumentalização da lei e da administração a um propósito autoritário.
Canotilho e Vital Moreira consignaram sobre o princípio: “Afastam-se ideias transpessoais do Estado como instituição ou ordem divina, para se considerar apenas a existência de uma res pública no interesse dos indivíduos. Ponto de partida e de referência é o indivíduo autodeterminado, igual, livre e isolado”. O Estado de Direito está vinculado, nessa linha de pensar, a uma ordem estatal justa, que compreende o reconhecimento dos direitos individuais, garantia dos direitos adquiridos, independência dos juízes, responsabilidade do governo, prevalência da representação política e participação desta no Poder Legislativo.
Ainda ensinaram Canotilho e Vital Moreira: “O Estado de Direito reduziu-se a um sistema apolítico de defesa e distanciação perante o Estado”. Tornam-se as suas notas marcantes: a repulsa da ideia de o Estado realizar atividades materiais, acentuação da liberdade individual, na qual só a lei podia intervir e o enquadramento da Administração pelo princípio da legalidade.
A procura da jugulação do arbítrio, como acentuou Celso Ribeiro Bastos (Comentários à Constituição do Brasil, primeiro volume, pág. 422), só se pode dar debaixo dos subprincípios que estão enfeixados na concepção ampla do Estado de Direito. Não se conhece a liberdade senão os países que consagraram a primazia do direito.
Pois bem.
Diria, respeitosamente, que o legado deixado pelo coronel Erasmo Dias, um dos ícones da ditadura e da repressão não se coaduna com o estado de direito implantado pela Constituição de 1988.
Morto em 2010, militar é acusado de delitos na ditadura, como tortura psicológica contra presos políticos, repressão e proteção de policiais que cometeram abusos.
A ditadura foi um período histórico caracterizado por graves violações de direitos humanos,
Vejamos o que disse Luíza Nagib Eluf (A invasão da PUC, in Migalhas, em 27.9.2007):
“O ano de 1977 foi marcado por episódios determinantes para a restauração da democracia no País. Em 8 de agosto, foi lida no pátio da Faculdade de Direito da USP a célebre Carta aos Brasileiros, de autoria do professor Goffredo da Silva Telles Junior. Na noite de 22 de setembro, soldados da Polícia Militar do Estado de São Paulo, comandados pelo então secretário de Segurança Pública, coronel Erasmo Dias, invadiram a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, situada na Rua Monte Alegre, no Bairro de Perdizes, e prenderam os alunos que ali estavam reunidos, provenientes de várias faculdades. O motivo alegado era a desobediência dos estudantes, que teimavam em recriar sua entidade nacional, a UNE, que fora banida por determinação da ditadura militar que imperava no País.
A invasão foi um ato de selvageria, de truculência, de arbitrariedade, que só poderia ter sido concebido pela mente obscura e doentia dos opressores de plantão. Os soldados entraram batendo e gritando ofensas de todo calão, lançando bombas sabe-se lá de que efeitos, mas o fato é que muitas pessoas passaram mal, desmaiaram e pelo menos duas alunas da universidade foram gravemente queimadas.”
Os fatos são do conhecimento o público e demonstram bem que a ação do coronel Erasmo Dias não se coaduna à democracia. Ele serviu à ditadura.
Há uma lei paulista que homenageia o coronel reformado do Exército e ex-deputado estadual, Antônio Erasmo Dias, onde o militar recebeu um viaduto em seu nome em Paraguaçu Paulista (SP).
Há com a edição dessa lei uma evidente afronta a princípios fundamentais do estado democrático de direito.
Há uma ação do Centro Acadêmico da PUC-SP e de PT, PSOL e PDT.
Sobre o tema assim se manifestou a Procuradoria Geral da República em parecer:
“A trajetória de vida da personalidade homenageada com a designação de seu nome a via pública, historicamente ligada a atos antidemocráticos praticados na vigência da ditadura militar no Brasil, significa perenizar a memória de momento tormentoso da história brasileira e, em consequência disso, enaltecer, mesmo que de forma simbólica, o autoritarismo”.
“Qualquer ato estatal que, de forma explícita ou velada, enalteça o autoritarismo é contrário à própria gênese do regime democrático e merece o mais veemente repúdio”,
Atos de homenagens na denominação de bens públicos devem ser compatíveis com os princípios estabelecidos na Constituição Federal, em especial a promoção e a defesa do Estado Democrático de Direito. É o que a Advocacia-Geral da União (AGU) defende em manifestação apresentada nesta quarta-feira (06/09) ao Supremo Tribunal Federal para pedir a suspensão da eficácia e declaração de inconstitucionalidade da Lei Estadual de São Paulo nº 17.700/23. A norma deu a um trecho de rodovia em Paraguaçu Paulista (SP) o nome de “Deputado Erasmo Dias”, personagem que participou de episódios de repressão durante a ditadura (1964-1985). Assim se pronunciou a Advocacia- Geral da União.
A Lei paulista que homenageia o ex-deputado Erasmo Dias, dando seu nome a trecho de rodovia em Paraguaçu Paulista, nada tem de técnica. Ao contrário, é uma autêntica afronta ao estado democrático de direito.
*É procurador da república aposentado com atuação no RN.
Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.
“O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente.”
Mário Quintana
Há algum tempo, tenho escrito sobre o trabalho cuidadoso e deliberado do governo Bolsonaro em desestruturar as instituições brasileiras. O que parece, muitas vezes, uma desídia, quando analisado detidamente, demonstra ser uma estratégia de enfraquecimento das conquistas democráticas acumuladas ao longo de séculos de história. E é muito difícil lidar com quem não tem nenhum limite no trato com os direitos e garantias constitucionais e individuais.
Desde as eleições, quando o grupo que assumiu o governo federal resolveu usar mentiras, ataques pessoais e baixarias cruéis, nós deveríamos ter entendido que eles não mediriam esforços para alcançar o que pretendiam. E nem para se manterem no poder. A frase do coronel Jarbas Passarinho, ao assinar o AI-5, “Às favas todos os escrúpulos de consciência”, parece ter virado um lema para o atual governo.
Mas, mesmo para quem está se acostumando com as criaturas bizarras que saem diretamente do esgoto que se transformou o governo do Brasil, está sendo difícil conviver com o modo com que estão tratando a questão da tortura durante o golpe cruel e assassino que se abateu sobre o país após 64.
Percebe-se um grau de cinismo e desprezo pela dignidade da pessoa que, penso, só vem à tona de maneira assumida por acreditarem esses bárbaros que o trabalho de desestruturar as instituições já lhes permite fazer, a céu aberto, todo tipo de sandices.
Quando o Presidente da República exalta o sofrimento e homenageia o torturador, ele dá um sinal para os monstros teratológicos saírem das trevas e assumirem suas faces verdadeiras a olho nu.
O episódio da revelação dos áudios das sessões do Superior Tribunal Militar é de uma gravidade inaudita. Todos nós conhecemos o Projeto Brasil Nunca Mais, coordenado pelo magnífico Dom Paulo Evaristo Arns que, em 1985, em um ato de grande coragem e desprendimento do nosso inesquecível Sigmaringa Seixas, dentre outros, apresentou provas incontestáveis, baseadas em autos da Justiça Militar, de inúmeros casos de tortura.
Esse grupo pesquisou, clandestinamente, no período de 1979 a 1985, centenas de processos judiciais e, correndo o risco da própria vida, produziu importante documentação sobre os anos de chumbo da ditadura. Os processos eram retirados dos cartórios por advogados, verdadeiros heróis, que cuidavam de tirar cópias escondidas para fotografar a história das barbáries. A história da ditadura. A história do Brasil.
Foram analisadas mais de 850 mil páginas de processos e o trabalho resultou no livro de não ficção mais vendido do país. Não havia como o Estado refutar, pois eram documentos produzidos pelo próprio Estado: foram mais de 20 mil brasileiros torturados naquele período.
Quando pensávamos que nada poderia ser mais cruel do que o Presidente da República defender a tortura, eis que o horror é jogado friamente nas nossas caras. Agora, com vozes cavernosas e macabras, através dos registros também obtidos oficialmente dos julgamentos do mesmo Superior Tribunal Militar.
Deu asco, vergonha e nojo de ver o Presidente do Tribunal, um general do Exército, ironizar as dramáticas gravações e dizer que elas “não estragaram a Páscoa de ninguém.” E ainda ousou afirmar que eram “notícias tendenciosas” para atingir as Forças Armadas. Ora, o que atinge as Forças Armadas é o silêncio sobre as torturas. É a cumplicidade.
Sobre os mesmos fatos, o General Vice-Presidente da República tripudiou com o sentimento das famílias e de quem tem dignidade e humanidade ao afirmar, gozando: “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô (risos). Vai trazer os caras do túmulo de volta?”
No mesmo dia, um ex-integrante do Exército, que serviu na Brigada Paraquedista, resolveu contar detalhes dos flagelos impingidos a um jovem casal, morto em 8 de dezembro de 1968, após a “menina ter tomado choque na vagina, no ânus, na boca, nos lábios”. Covardes. Bandidos. Algozes que envergonham a humanidade.
A banalização da violência, o culto à tortura, o desprezo à vida e ao Estado democrático de direito são um alerta para todos nós. As próximas eleições podem ser as mais importantes da história do Brasil, até porque podem ser as últimas. Nenhum povo aguenta viver sob o jugo da barbárie.
Vamos fazer dessas nossas dores e dos nossos horrores uma força para tirarmos a venda da tirania e as amarras do nosso imobilismo e enfrentar os vermes que vivem do submundo. Como ensinou Clarice Lispector, “Atitude é uma pequena coisa que faz uma grande diferença.”.
*É advogado.
Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.
“Na tarde de 22 de outubro, durante um churrasco realizado em Itapeva, no interior de São Paulo, Castello e Costa e Silva confraternizavam com a oficialidade que acabara de concluir manobras militares na região. O ministro, violando a programação, resolveu discursar para a tropa. (…) Costa e Silva desafiou-o diante de uma platéia que, como a do Automóvel Clube em março de 1964, gritava “Manda brasa”. Mandou-a. “O Exército tem chefe. Não precisa de lições do Supremo. […] Dizem que o Presidente é politicamente fraco, mas isso não interessa, pois ele é militarmente forte”, atacou Costa e Silva, pedindo desculpas ao presidente pela ênfase. (GASPARI, 2002a, p.271)
A mídia se dividia.
A reação da imprensa foi dividida. O Correio da Manhã denunciou a gravidade da situação e a indisciplina do ministro da Guerra, que colocava o presidente em posição difícil. Acusou o governo de atentar contra o princípio da independência e harmonia dos poderes. O Jornal do Brasil divulgou a existência de um projeto de novo Ato Institucional, que permitiria novas cassações de mandatos, e relatou os incidentes relativos ao Supremo sem tomar partido. O jornal O Globo apoiou o governo, afirmando que a continuidade da revolução estava em jogo. Para atingir os seus fins, ela tinha que ser una, não podendo existir um Executivo pró-revolucionário, um Legislativo ambivalente e um Judiciário neutro. (COSTA, 2006, p.166)
O presidente do STF, entretanto, mesmo partidário da UDN, tentava manter a moral do tribunal intacto, “(…) segundo a história oral do Tribunal, depois Moutinho da Costa reagiu a ameaças do ministro do Exército, Costa e Silva, ameaçando fechar a casa e mandar a chave da instituição ao Planalto”. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a). Em 25 de Outubro, antes de votar habeas corpus em favor de Juscelino Kubitschek, os ministros do STF votam moção de apoio à manutenção de Ribeiro da Costa na presidência do STF até o término de sua judicatura.
O Supremo preparava-se para considerar um pedido de habeas corpus em favor do ex-presidente Juscelino Kubitschek, alvo de inquérito policial militar. A 25 de outubro, em sessão plena, os ministros aprovaram, em emenda regimental, o prolongamento do mandato do ministro Ribeiro da Costa até o término de sua judicatura, medida obviamente de desagravo pelas críticas que ele vinha sofrendo por parte de militares e de alguns setores da imprensa. (COSTA, 2006, p.166-7).
O mandato dele terminava em 1966, e a emenda prorrogou por mais seis ou sete meses. Ribeiro da Costa ficou, com uma posição muito vigilante, atuante, brava. (SILVA, 1997, p. 382)
Nesse momento a configuração dos ministros era a mesma que havia presenciado o golpe de 1964. A partir de então começa o desmonte do antigo STF e a reformulação de uma nova composição da corte. O primeiro golpe foi o AI-2.
Dois dias depois, a 27 de outubro de 1965, o presidente Castelo Branco emitiu o Ato Institucional na 2, que veio atingir diretamente o Supremo Tribunal Federal, alterando a sua composição. O número de ministros foi aumentado de onze para dezesseis, tendo sido nomeados cinco ministros com militância partidária na UDN, mais adequados, portanto, à política do momento. (COSTA, 2006, p.167)
O documento estabelecia ainda o aumento de 11 para 16 do número de ministros do Supremo Tribunal Federal. Esta reforma do STF fora imposta a Castelo pelos militares da linha dura irados com as sucessivas decisões da mais alta corte judiciária contra os procuradores do governo em graves casos de “subversão”. O presidente do Tribunal, ministro Ribeiro da Costa, denunciou a manobra, mas inutilmente. (SKIDMORE, 1988, p. 102)
Foram nomeados 5 ministros aliados ao regime militar, com tendências políticas ligadas a UDN e que facilitariam a aprovação dos interesses do regime militar no STF. Entretanto não garantiriam ainda a plena maioria contra o antigo liberalismo judiciário.
Tabela 2 – Ministros nomeados para assumir as cadeiras criadas pelo AI 2 em 16/11/1965
Além dos novos ministros o AI-2 trouxe diversas novas configurações ao governo.
O Ato Institucional no 2, de outubro de 1965, aboliu a eleição direta para presidente da República, dissolveu os partidos políticos criados a partir de 1945 e estabeleceu um sistema de dois partidos. O AI-2 aumentou muito os poderes do presidente, concedendo-lhe autoridade para dissolver o parlamento, intervir nos estados, decretar estado de sítio, demitir funcionários civis e militares. Reformou ainda o judiciário, aumentando o numero de juizes de tribunais superiores a fim de poder nomear partidários do governo. O direito de opinião foi restringido, e juizes militares passaram a julgar civis em causas relativas a segurança nacional. (CARVALHO, 2005, p.161)
Apesar dos protestos dos membros do STF (…) nada aconteceu quando o Ato Institucional nº 2 aumentou o número de ministros de onze para dezesseis. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a). Seguiram-se os trabalhos do STF, porém o espaço para decisões contrárias ao governo militar diminuiu. Os atos impetrados pelo governo militar com base no AI-2 não podiam ser apreciados pelo poder judiciário. “O controle jurisdicional desses atos se limitaria a formalidades extrínsecas, ficando vedada à apreciação dos fatos que os motivaram. (…) “excluída a apreciação judicial desses atos”. O AI-2 institucionalizava o arbítrio sob a fachada de legalidade”. (COSTA, 2006, p.167)
Para não cassar ministros do STF, Castello Branco aumentou o número de magistrados do Tribunal de 11 para 16, por meio do AI-2, de 27 de outubro de 1965. Nomeou cinco ministros: Adalício Nogueira, Prado Kelly, Oswaldo Trigueiro, Aliomar Baleeiro e Carlos Medeiros. Mais tarde, em fevereiro de 1967, nomeou o deputado federal Adaucto Lucio Cardoso, da União Democrática Nacional (UDN), para ocupar a vaga deixada pela aposentadoria do ministro Ribeiro da Costa. Foi justamente Adaucto Lucio o protagonista de outro célebre exemplo de resistência do STF, o caso da lei da mordaça.
A lei da mordaça, um decreto-lei que instituía a censura prévia de originais de qualquer livro que se quisesse publicar, foi aprovada pelo Congresso no governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). A oposição entrou com um recurso no STF, dizendo que aquela norma era inconstitucional, por atentar contra a liberdade de expressão, mas o Supremo disse que não poderia se intrometer nos interesses da revolução.
Indignado com o posicionamento do Tribunal, o ministro Adaucto Cardoso, que fora nomeado pelo militares, levantou-se, retirou a toga e disse que nunca mais voltaria ao Supremo, solicitando sua aposentadoria nessa sessão de março de 1971, logo após o julgamento do recurso. Na opinião de Carlos Chagas, esse foi um ato libertário.
Em novembro de 1965, o Presidente da República submeteu ao Senado a indicação de Alcino Paulo Salazar para substituir Osvaldo Trigueiro no cargo de Procurador-Geral da República.
Com a linha dura no governo militar, a edição do AI 5, três ministros do STF foram obrigados a se aposentar: Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.”
Essas duas providências aqui trazidas são de grave repercussão sobre os direitos e garantias constitucionais, porque a Corte Suprema representa a guarda, a defesa da ordem constitucional e ainda preservação de direitos fundamentais, representando um sério perigo que a sociedade deve atentar na defesa do Estado Democrático de Direito.
Passo ao tema da tortura.
Na década de 1970, a ex-presidente Dilma Roussef ficou presa por três anos em razão de sua atuação contra a ditadura. No dia 28 de dezembro deste ano, o presidente Bolsonaro falava com apoiadores no Alvorada quando foi questionado sobre o atentado que sofreu na campanha eleitoral de 2018. Nesse momento, ele falou sobre a ex-presidente.
“Dizem que a Dilma foi torturada e fraturaram a mandíbula dela. Traz o raio-X para a gente ver o calo ósseo. Olha que eu não sou médico, mas até hoje estou aguardando o raio-X”, disse o presidente, entre gargalhadas, como acentuou o Valor Econômico.
Em 2016, durante a votação do impeachment da ex-presidente, na Câmara dos Deputados, o então parlamentar Jair Bolsonaro, ao votar pelo impedimento, exaltou o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou o DOI-Codi do 2º Exército – órgão de repressão política da ditadura militar – entre 1970 e 1974. Na ocasião, chamou-o de “o pavor de Dilma Rousseff”.
Foi extremamente infeliz a lembrança pelo presidente da República de um período tão triste e sinistro da história do Brasil.
Roberto Navarro (Mundo estranho) assim escreveu sobre a tortura na ditadura militar, no Brasil:
“Uma pesquisa coordenada pela Igreja Católica com documentos produzidos pelos próprios militares identificou mais de cem torturas usadas nos “anos de chumbo” (1964-1985). Esse baú de crueldades, que incluía choques elétricos, afogamentos e muita pancadaria, foi aberto de vez em 1968, o início do período mais duro do regime militar. A partir dessa época, a tortura passou a ser amplamente empregada, especialmente para obter informações de pessoas envolvidas com a luta armada. Contando com a “assessoria técnica” de militares americanos que ensinavam a torturar, grupos policiais e militares começavam a agredir no momento da prisão, invadindo casas ou locais de trabalho. A coisa piorava nas delegacias de polícia e em quartéis, onde muitas vezes havia salas de interrogatório revestidas com material isolante para evitar que os gritos dos presos fossem ouvidos. “Os relatos indicam que os suplícios eram duradouros. Prolongavam-se por horas, eram praticados por diversas pessoas e se repetiam por dias”, afirma a juíza Kenarik Boujikain Felippe, da Associação Juízes para a Democracia, em São Paulo. O pau comeu solto até 1974, quando o presidente Ernesto Geisel tomou medidas para diminuir a tortura, afastando vários militares da “linha dura” do Exército. Durante o governo militar, mais de 280 pessoas foram mortas – muitas sob tortura. Mais de cem desapareceram, segundo números reconhecidos oficialmente. Mas ninguém acusado de torturar presos políticos durante a ditadura militar chegou a ser punido. Em 1979, o Congresso aprovou a Lei da Anistia, que determinou que todos os envolvidos em crimes políticos – incluindo os torturadores – fossem perdoados pela Justiça.”
Até os dias de hoje a ditadura militar é tema polêmico.
Em texto, publicado no dia 31 de Março de 2020, o Ministério da Defesa disse que “o movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira” e que “a sociedade brasileira, os empresários e a imprensa entenderam as ameaças daquele momento, se aliaram e reagiram. As Forças Armadas assumiram a responsabilidade de conter aquela escalada, com todos os desgastes previsíveis”. O texto foi assinado pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e pelos comandantes das Forças Armadas.
O golpe militar de 31 de março de 1964 veio para dar solução a problemas daquele momento, mas durou mais de 20 anos.
A tortura foi um dos métodos violentos e cruéis utilizados no combate aos inimigos, principalmente aqueles que adotaram a chamada “luta armada”.
Fala-se do crime de tortura.
O crime de tortura se encontra balizado pela Lei 9.455/97, que teve como ponto de partida os termos da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, ficando a tortura no processo de progressiva incorporação no Ordenamento Jurídico Internacional. Isto se vê no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1976, que foi ratificado pelo Brasil, em 1992, onde se lê, no artigo 7º, que “ninguém será submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos crués, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa sem seu livre consentimento , a experiências médicas e científicas”.
Em 1975 foi elaborado texto constante da Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes.
A Assembleia-Geral da ONU adotou a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas crueis, desumanos ou degradantes(1984) e foi ratificada pelo Brasil no ano de 1989 e por mais de aproximadamente 123 países.
Dirão os que apoiaram a ditadura militar: “Até os heróis matam”.
Tem-se o conceito de tortura:
Art. 1º – O termo tortura designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido: de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação ou como o seu consentimento ou aquiescência.
A Lei 9.455/97, primeira norma nacional que traz definição do que seja crime de tortura, dita:
Art. 1º. Constitui crime de tortura:
I. constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico e mental:
com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
em razão de discriminação racial ou religiosa;
II. submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
§ 1º. Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.
§ 2º. Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.
Por sua vez, o crime de tortura-castigo está elencado no artigo 1º, inciso II da Lei 9.455/97, onde se diz: “Submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”. Não são todas as pessoas que podem praticar tortura, mas somente quem tem alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, e emprega contra essa pessoa violência ou grave ameaça, causando intenso sofrimento físico ou mental, com o objetivo de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Assim a intensidade do sofrimento irá definir o crime de tortura.
Mário Coimbra (Tratamento do injusto penal da tortura, 2002, pág. 186) ensinou com relação ao crime de tortura-castigo que, no tocante à quarta modalidade de tortura, inserida no art. 1º, inciso II, da lei em exame, o núcleo reitor do tipo está representado pelo verbo submeter, que, no sentido do texto, denota a ação de sujeitar, de subjugar a vítima a intenso sofrimento físico ou mental. Tal modalidade de tortura é conhecida por punitiva/vingativa e intimidatória, por ser aplicada, com a finalidade de castigar a vítima ou mesmo para prevenir a prática de eventual indisciplina, nos casos em que o torturador detém a sua guarda ou tenha, sobre ela, poder ou autoridade”.
Necessário para se caracterizar o crime de tortura: o meio empregado(violência ou grave ameaça), as consequências sofridas pela vítima(constrangimento e o sofrimento físico/mental) e a finalidade pretendida.
Na lição abalizada de Luciano Maia(Tortura no Brasil: a banalidade do mal) há várias condutas que podem tipificar o delito de tortura. Nenhuma delas é exclusiva de agente púbico. Disse ele: “ A lei brasileira, contrariamente às convenções internacionais, optou por criminalizar a tortura como tal, deixando de lado a tendência consolidada nas Nações Unidas, e mesmo no âmbito da Organização dos Estados Americanos, de relacioná-la a agentes do Estado.
Fala-se em sofrimento físico ou mental. Ainda nos diz Luciano Maia(obra citada) que “enquanto não parece haver dúvida quanto ao que significa sofrimento físico, o mesmo não se dá quando se refere a sofrimento mental. McGoldrick critica o Comitê de Direitos Humanos da ONU que, examinando casos de violação ao artigo 7º do Pacto dos Direitos Civis e Políticos, não se revelou capaz de definir sofrimento mental ou psicológico, muito menos de apontá-lo como forma de tortura.
Disse ainda Luciano Maia: “Alcança várias situações reclamadas no âmbito internacional como necessárias de serem incluídas no rol de condutas que significam tortura, tais como violência doméstica contra crianças, em que os agressores são indivíduos destituídos de poder do Estado, mas imbuídos da autoridade paterna. Alcançará maridos, namorados, amantes, que, através da força física e econômica, submetem suas mulheres ou companheiras a intenso sofrimento físico ou mental? Terão eles guarda, poder ou autoridade sobre suas mulheres, companheiras ou amantes, para que possa se configurar tortura a violência praticada?
Creio que a resposta deve ser afirmativa. Com Lisa Kois, também considero possível afirmar que essas formas de violência contra a mulher resultam de um contexto de construção patriarcal da sexualidade feminina, e “conquanto a violência perpetrada contra as mulheres em casa não seja inteiramente análoga com a tortura oficial de mulheres, inobstante isso ela existe em um mesmo continuum de violência contra a mulher como um instrumento poderoso em sistemas que mantêm a mulher oprimida e lhes nega seus direito de plena participação em suas sociedades. As técnicas empregadas na perpetração de tortura oficial e de tortura doméstica são análogas, assim como o são os objetivos“.
Com relação ao crime previsto no 1º, §1º, da Lei nº 9.455/97, que se trata de forma de tortura, afigura-se o exemplo da aplicação de “corretivo”, ao detento. No caso, como ensinam Sheila Bierrenbach e Marcellus Polatri Lima (Comentários à lei de tortura – Aspectos penais e processuais penais – 2006, pág. 70), Guilherme de Souza Nucci(Leis penais e processuais penais comentadas, 2008, pág. 1.093) e ainda Antônio Lopes Monteiro(Crimes hediondos, 2008, pág. 98), basta, para a configuração do crime, o dolo de praticar a conduta descrita no tipo objetivo. Neste aspecto a ausência do especial fim de agir nesta modalidade de tortura diferencia-se das demais previstas no texto legal que, por outro lado, exigem sua presença. Nas formas de tortura, descritas no artigo 1º, incisos I e II, somente se perfazem se tiver agido o agente imbuído por uma finalidade específica. No caso do inciso I, para “obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; provocar ação ou omissão de natureza criminosa e por motivo de descriminação racial ou religiosa”. Já no caso do inciso II, no intuito de “aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”, se a vítima se encontra presa não se exige o especial fim de agir na conduta do agente. A esse respeito, é mister a leitura do voto-vista do Ministro Félix Fischer, no Recurso Especial 856.706 – AC.
A teor do artigo 5º, XLIII, da Constituição Federal a tortura é crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
Trata-se de crime próprio em que o sujeito ativo é quem detém autoridade, guarda ou poder sobre a vítima. O sujeito passivo é quem estiver sob essa relação que deve ser de dependência, não necessariamente no exercício de uma função pública. Tem-se a lição de José Ribeiro Borges(Tortura: aspectos históricos e jurídicos: o crime de tortura na legislação brasileira – análise da lei nº 9.455/97, 2004, pág. 178) de que “é punição, penalidade, provocação com objetivo de correção ou emenda. Não precisa ser lesivo à pessoa no sentido de causar-lhe lesões, muito menos revestir-se de natureza cruel”. A medida de caráter preventivo, como disse ainda João Ribeiro Borges, “não obstante o caráter vago do termo pode ser entendida como expediente de que se valha para coibir a prática de ações consideradas danosas sob o ponto de vista penal, ligando-se assim a ideia de prevenção criminal”.
Consuma-se o crime de perigo quando a vítima é submetida ao intenso sofrimento, podendo falar-se em tentativa.
Os crimes de lesões corporais leves, constrangimento ilegal e ameaça são absorvidos pelo crime de tortura.
A teor do artigo 1º, § 5º, da Lei nº 9.455/97, a condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. Pode-se entender, a teor do artigo 92, I, do Código Penal que os efeitos extrapenais da condenação passada em julgado são específicos e não automáticos. Só se aplicam a certas hipóteses de determinados crimes e dependem de a sentença condenatória tê-los motivadamente declarado, de modo a deixar claras a necessidade e a adequação ao condenado. No entanto, com relação ao crime de tortura, o Superior Tribunal de Justiça, do que se lê do julgamento do HC 92.247 – DF, Relatora Ministra Laurita Vaz, ao contrário do disposto no artigo 92, I, do Código Penal, que exige sejam externados os motivos para a decretação da perda do cargo, função ou emprego público, a Lei nº 9.455/97, em seu artigo 1º, § 5º, prevê como efeito extrapenal automático e obrigatório da sentença condenatória, a referida penalidade de perda de cargo, função ou emprego público. À propósito se tem o entendimento de Fernando Capez(Curso de direito penal, Legislação penal especial, volume IV, 2006, pág. 676 e 677) quando disse que: “De acordo com o artigo 92 do Código Penal, são efeitos da condenação a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública, quando a pena aplicada for superior a 4 anos, qualquer que seja o crime praticado(redação determinada pela Lei nº 9.268/96). Dependem de o juiz declará-los expressa e motivadamente na sentença(CP, art. 92, parágrafo único). No entanto, para os crimes de tortura há o regramento específico no art. 1º, § 5º, da Lei nº 9.455/97, o qual dispõe que ‘a condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego e a interdição para seu exercício pelo prazo do dobro da pena aplicada’. Dessa forma, trata-se de efeito extrapenal secundário genérico e automático, o qual, ao contrário do art. 92 do CP, independerá de expressa motivação na sentença. Haverá, assim, automaticamente, a perda do cargo, função ou emprego e a interdição para o seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. Vejam que a Lei nº 9.455/97 não impôs para a perda do cargo, função ou emprego público qualquer limite de pena, diferentemente do art. 92 do CP”.
Ora, como consignado pelo Ministro Joaquim Barbosa, no julgamento do AI 769.637 AgR/MG, o crime de tortura é delito comum, sendo-lhe inaplicável o disposto no artigo 125, § 4º, da Constituição, que determina que compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. Decidiu-se ainda que, no caso da Lei nº 9.455/97, “a sanção de perda do cargo é acessória e automática”, como se lê do precedente no HC 92.181/MG, Relator Ministro Joaquim Barbosa, julgamento de 3 de junho de 2008.
Outro aspecto a ser levado em conta diz respeito a aplicação do artigo 2º da Lei nº 9.455/97, em que se lê: “O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira”. É sabido que o Código Penal acolhe como princípio geral o da territorialidade, pelo qual a lei penal brasileira é aplicada em nosso território, independentemente da nacionalidade do autor e da vítima do delito. Tal regra não é aplicada de modo absoluto, pois são previstas exceções à partir das ressalvas do artigo 5º do Código Penal. Por sua vez, o artigo 7º do Código Penal prevê casos especiais de extraterritorialidade, pela aplicação de outros princípios, como os da defesa, da nacionalidade, da justiça universal e da representação.
O caso do artigo 2º da Lei nº 9.455/97 é emblemático. Sabido é que são diversos os casos de tortura, que foram executados nos chamados “anos de chumbo”, envolvendo mais de um País. Aplica-se a lei brasileira de tortura, ainda quando o crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira. A primeira parte(crime de tortura praticado no estrangeiro sendo a vítima brasileira) se refere a uma hipótese de extraterritorialidade incondicionada(que não depende de requisitos), que se distancia da extraterritorialidade condicionada(quando se subordina a certas condições ou pressupostos). Já a segunda parte(crime de tortura praticado no estrangeiro encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira) é caso de extraterritorialidade condicionada, situação prevista em duas Convenções sobre tortura: Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes(artigo 12) e a Convenção interamericana para prevenir e punir a tortura(artigo 5º), quando se condiciona que a lei será aplicada caso não haja extradição.
O crime de tortura está disciplinado no artigo 468 do Anteprojeto do Código Penal.
O Brasil não aprende: no dia 30 de março de 2018, um jovem deputado federal, Major Vitor Hugo, apresente proposta de lei de mobilização nacional, instrumento próprio para o combate a guerra externa e interna. Ele dá plenos poderes ao presidente da República para intervenção nas unidades federativas, requisição de bens, de pessoal, de uso das polícias militares nos Estados e Distrito Federal. Tudo isso diante de uma Constituição democrática que visou extirpar os males do movimento militar de 1964, para muitos, um golpe no Estado Democrático de Direito regido então pela Constituição de 1946. São atos de truculência, de alguém que preside o país, com sonhos num passado de pesadelos.
O Brasil não pode ficar entregue a golpistas delirantes e a velhacos. Isso representa para a Nação um “amargo regresso ao passado triste e diabólico”.
*É procurador da República com atuação no RN aposentado.
Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.
“É democracia, não é patifaria”, foi com essa frase de efeito que o deputado federal General Girão (PSL) justificou ao Blog do Magnos (ver AQUI) a nomeação do professor Josué Moreira (PSL) como reitor pró-tempore do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN).
Ontem as críticas foram direcionadas a Josué pela perplexidade que causou o envolvimento do ex-candidato a prefeito de Mossoró de perfil moderado numa subversão da ordem democrática.
Mas não podemos deixar de lembrar que sem o General Girão não haveria a nomeação de um reitor sem votos para comandar o IFRN. Sem o líder do bolsonarismo no Rio Grande do Norte a votação não seria ignorada.
O deputado Girão tem uma visão bem peculiar da democracia. Manifestação só vale se for a que ele concorda. Posição política só se for a dele. Escola sem partido, mas o dos outros. Ideologia só se for a dele.
Girão é um saudosista do regime de 1964. Daí a sua nova política ter um forte cheiro de mofo.
Nos primeiros dias após o golpe militar centenas de políticos foram cassados. Aqui no Rio Grande do Norte o prefeito de Natal Djalma Maranhão foi tirado na marra do Palácio Felipe Camarão.
Qualquer motivo servia para cassar políticos adversários. Aluízio Alves, um entusiasta do golpe, foi cassado.
Como nos anos de chumbo ontem a sociedade potiguar assistiu um golpe ser dado no IFRN impedindo a posse do reitor eleito democraticamente José Arnóbio de Araújo Filho. A desculpa é que ele responde a um processo administrativo por causa de uma banquinha Lula Livre colocada por alunos num evento realizado pela Igreja Católica nas dependências do Campus de Natal.
Não me venham com a desculpa foi essa. A questão é que o reitor escolhido pela comunidade acadêmica não era o do agrado do bolsonarismo.
A questão é política! Os frágeis argumentos jurídicos são apenas uma cortina de fumaça.
Desde que assumiu a presidência Jair Bolsonaro, um notório defensor da Ditadura Militar, passou a não respeitar a ordem de votação dos reitores das universidades federais. No IF de Santa Catarina foi feito algo semelhante ao que aconteceu no Rio Grande do Norte, mas o escolhido recusou o convite e defendeu a nomeação do mais votado.
O que aconteceu nas terras de Poti não foi uma exceção provocada por algum entrave jurídico como alegam, mas a regra do bolsonarismo para eliminar a tradição democrática do nosso ensino superior.
A democracia de Girão é peculiar como a dos generais da ditadura que discursavam em favor da democracia enquanto tomavam atitudes autoritárias e estimulavam a tortura. A nova política do deputado tem o mofo do autoritarismo.
Imagine se, em 1979, a ditadura militar do Brasil tivesse sido deposta por um clérigo em uma revolução. Imagine se estes revolucionários instalassem um regime religioso e enforcassem opositores. Imagine se mantivessem 52 diplomatas americanos como reféns na Embaixada dos EUA em Brasília por 444 dias.
Imagine se, na década seguinte, a ditadura religiosa brasileira travasse uma guerra contra a ditadura de Pinochet, apoiada por Ronald Reagan, e centenas de milhares de pessoas morressem nos combates. Imagine se houvesse uma Guarda Revolucionária que apoiasse milícias religiosas envolvidas em terrorismo em outras nações.
Imagine se este regime religioso proibisse o carnaval e impusesse regras para a forma como as mulheres deveriam se vestir, perseguisse seu irmão por ser homossexual e torturasse outro por ter criticado um governante em artigo no jornal. Imagine se você não pudesse levar a sua filha para torcer pelo Botafogo contra o Fluminense no Maracanã porque as autoridades considerariam pecado alguém do sexo feminino assistir a futebol. Imagine se a sua outra filha apanhasse da polícia religiosa por ter ousado ir de biquíni ver o pôr do sol no Arpoador. Imagine se a música Garota de Ipanema fosse censurada.
Imagine se você, enfrentando problemas financeiros decorrentes da crise econômica, tivesse de pagar impostos para o regime religioso apoiar uma milícia chamada Partido de Deus no México. Imagine se você fosse contra todo este regime.
Você ainda seria alvinegro e contaria para a sua filha dos tempos em que a avó dela o levava ao Maracanã para ver a genialidade do Garrincha contra a academia palmeirense do Ademir da Guia. Você ainda mostraria a seus filhos as canções da Bossa Nova e do Tropicalismo quando estivessem trancados dentro do apartamento. Com o volume baixo para o vizinho extremista religioso não o denunciar ao regime. Você ainda sonharia com a liberdade em seu país.
Mas imagine que, apesar de seu filho ser totalmente contra a ditadura religiosa, ele fosse proibido de entrar nos EUA para um doutorado em biologia porque Donald Trump proibiria a entrada de todos os brasileiros no território americano. Imagine se você fosse acusado de pertencer a um regime que tanto condena quando estivesse no exterior. Imagine se o acusassem de ser terrorista por ser brasileiro. Imagine se sanções impostas pelos EUA impactassem na sua capacidade de pagar o aluguel.
Imagine se dissessem que a cultura brasileira fosse atrasada e pregasse o ódio. Imagine se ignorassem seus músicos, seus escritores e suas tradições como se nada disso houvesse existido e o Brasil se restringisse a um regime religioso.
Obviamente, este é um paralelo com o drama de muitos iranianos que não estiveram no funeral de Qassem Soleimani. São contra o regime dos aiatolás, assim como também muitos deles condenavam as atrocidades da Savak (polícia secreta) na ditadura do xá. Não suportam a intolerância com mulheres e gays. Querem ter liberdade e o fim da tortura. Não querem que o dinheiro dos seus impostos seja usado para armar o Hezbollah em vez de melhorar a Saúde.
Admiram a educação americana e repudiam ataques a americanos, mas não se esquecem do golpe armado pela CIA para derrubar Mossadegh. Sabem também da hipocrisia de Washington ao apoiar a ditadura de Saddam Hussein na Guerra Irã-Iraque e da aliança com o sanguinário saudita Mohammad bin Salman enquanto finge defender a democracia no Irã.
“É mais fácil fazer uma revolução que governar bem um país”, constatou embaixador suíço
GENEBRA – A ambição pelo poder entre os generais brasileiros que fizeram parte do Golpe de 1964 criou uma nova “desordem” política no país e ameaçou até mesmo a união dentro das Forças Armadas. Foi assim que um telegrama confidencial da diplomacia suíça descrevia, preocupada, o que ocorria no Brasil, dois anos depois da chegada ao poder dos militares.
O documento está hoje preservado nos arquivos diplomáticos em Berna e revela um raro olhar estrangeiro sobre o que ocorria no Brasil. No dia 24 de maio de 1966, o então embaixador da Suíça no Brasil, Giovanni Bucher, escrevia ao conselheiro federal Willy Spuhler, para o atualizar sobre o cenário político no país.
E ele começa o telegrama com um alerta. “Desde que estou no Rio de Janeiro, escuto falar de forma mais ou menos séria da crise política no Brasil, da incapacidade do presidente (Humberto de Alencar) Castello Branco de governar o país, da intensa luta interna entre os generais e mesmo a possibilidade de um novo golpe de Estado”, apontou.
De acordo com o relato, em março de 1964, havia uma “unanimidade contra (João) Goulart” no país e, segundo o diplomata suíço, os planos de um golpe já tinham começado a ser elaborados desde 1961.
Mas o embaixador seria claro em sua avaliação: “é mais fácil fazer uma revolução que governar bem um país”. Segundo ele, um dos maiores obstáculos naquele momento era a ambição que militares tinham de chegar ao poder.
Disputa de poder
“As primeiras dificuldades começaram na escolha de um presidente provisório entre os ‘revolucionários'”, disse o embaixador.
Segundo ele, se Castello Branco tinha sido escolhido para apaziguar uma disputa entre nomes mais fortes, a esperança dos generais era de que ele cumprisse as ordens daqueles que, de fato, estavam no comando. “Contrariamente a esse desejo, essa personalidade considerada como fraca seguiu sua própria política”, diz o telegrama. O texto aponta, assim, como os promotores da ideia de ter Castello Branco no cargo acabaram vendo seus interesses sendo marginalizados.
Elogiado pelo suíço por sua cultura “acima da média dos outros oficiais” e por seus gestos para reconduzir o país à “normalidade constitucional”, Castello Branco não teria uma vida fácil como presidente.
“Depois da liquidação da esquerda, os generais começaram a distribuir os ganhos. Vários foram os que desejavam ser o futuro presidente da República ou vice-presidente, ou governador dos estados”, escreveu o embaixador. Na visão do diplomata, a missão de Castello Branco era de “evitar uma desintegração do exército, a única força do país”.
Explicando o rigor do processo de seleção e disciplina, o suíço apontou que os oficiais brasileiros sempre colocaram o interesse do país como prioridade. “Juntos, eles prepararam a revolução de 1964. Mas, uma vez que provaram o gosto do poder, as novas ambições apareceram, ambições que parecem coloca em jogos velhas amizades”, alertou.
Costa e Silva no caminho
Artur da Costa e Silva, ministro da Guerra de Castello Branco, era quem fazia a vida do presidente ser especialmente difícil. “”Imediatamente depois da revolução, ele tomou posse de seu ministério sem admitir discussão”, contou o diplomata.
O suíço previa que, uma vez candidato à Presidência, Costa e Silva geraria reações de vários outros militares na tentativa de o “eliminar como candidato”. Enquanto isso, outros poderiam tentar forçar situações semelhantes, tendo em vista o sucesso das manobras de Costa e Silva.
“O infortúnio é que os chefes militares que quiserem colocar ordem na política do país criaram, por suas ambições pessoais, uma nova desordem quase tão infeliz quanto a antiga”, disse.
No campo econômico, os resultados eram também incertos. Se houve algum tipo de avanço em certos aspectos, o diplomata contava como os setores comerciais e industriais se queixavam. Segundo ele, “o custo de vida continua a aumentar muito rapidamente (18% nos quatro primeiros meses de 1966)” e apontou que, apesar do aumento do salário mínimo, o nível de vida da população sofreu uma queda.
As avaliações do embaixador sobre as pretensões de Costa e Silva se mostrariam corretas. Em 3 de outubro de 1966, ele seria eleito pelo Congresso Nacional para o cargo de presidente e como único candidato da Arena (Aliança Renovadora Nacional).
Em 1967, ele assumiu o poder e, para historiadores, iniciou a fase mais dura do regime militar, ampliada ainda por Emílio Garrastazu Médici.
Costa e Silva acabaria promulgando o AI-5, abrindo a possibilidade para cassar políticos e fechar o Congresso Nacional.
Durante a discussão do projeto de lei que dá o nome de Emmanuel Bezerra dos Santos para a Casa do Estudante de Natal, os deputados estaduais Allyson Bezerra (SD) e Coronel Azevedo (PSL) se posicionaram contra a homenagem.
A discussão foi na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa.
Coronel Azevedo classificou a homenagem como uma humilhação para a Polícia Militar. “Isso é uma humilhação para a Polícia Militar do Rio Grande do Norte. Ali, em 1935 era o quartel da PM. Emmanuel não era mais estudante e um militante do grupo que queria transformar o país numa ditadura. Vivia na clandestinidade e morreu enfrentando a Polícia”, justificou.
Já Allyson Bezerra negou influência ideológica no voto. “O deputado (Coronel Aezevedo) tem uma posição ideológica e por isso votou contra a admissibilidade. O meu não é por esse motivo. Deixei claro no voto. Mas sim para evitar que amanhã a casa aprove o nome de quem assassinou esse aluno como o nome de outro prédio público. O que irá ocorrer seguindo a linha da admissibilidade para tudo. Infelizmente está sendo associado ao inverso que defendo”, explicou.
Durante a discussão, a deputada Isolda Dantas reagiu: “Não se pode desqualificar. Se havia perseguição era porque o que havia no país era uma ditadura. Não vamos desconstruir os outros heróis. Homenageiem os seus heróis e respeitem os dos outros. Na democracia há o direito de se homenagear todos os heróis”.
Como o voto dela e dos deputados Kleber Rodrigues (Avante) e Hermano Morais (MDB) a proposta terminou sendo aprovada e será votada em plenário.
Quem foi
Emmanuel Bezerra dos Santos é natural de São Bento do Norte onde nasceu em 1947. Ele morou na Casa do Estudante, cursou o atual ensino médio no Atheneu e foi aluno do curso de pedagogia na UFRN onde se tornou liderança estudantil sendo presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE).
O estudante integrou o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o Partido Comunista Revolucionário (PCR).
Ele foi preso em Recife em 1973 sendo em seguida encaminhado ao DOI-CODI onde passou pelas mãos do delegado Sérgio Fleury. Emmanuel não resistiu as sessões de tortura. Aversão passada pelo regime era de que ele tinha morrido numa troca de tiros com a polícia na cidade de São Paulo.
O termo “golpe de Estado”, antes de tudo, é um conceito das ciências humanas. Principalmente os historiadores e sociólogos buscam entender esse conceito para, na utilização em meio à análise, haver precisão metodológica.
Esse conceito já possui muita bibliografia. Há produção sobre essa noção desde o século XVII, quando as mudanças no funcionamento do mundo das cortes fez necessária a criação de um novo arcabouço de ideias para entender o mundo autofágico da política. Partindo da realidade política palaciana, o conceito se emoldura em sua forma moderna entre o XVIII e o XIX. Um golpe de Estado é uma anormalidade institucional, assim como uma revolução, uma revolta, uma invasão ou um impedimento, mas se diferencia destas outras em sua forma. Os historiadores hoje entendem golpe como a interrupção de um mandato ilegalmente por parte de membros internos à própria instituição.
Este é o caso do ocorrido no Brasil em 1964: há uma interrupção – vacância do cargo de Jango – ilegal – constitucionalmente, o mandato seria inviolável – por membros internos – Exército, que é parte do organograma do Estado – à instituição – Estado brasileiro.
Entenda como se compôs o cenário em que uma atitude drástica como um golpe militar foi viabilizada e com amparo de parte da sociedade.
Para tanto, voltamos a 1961, ano fulcral deste processo. Neste período, o presidente Jânio Quadros, numa tentativa de reatar relações com a população e aumentar seu poder, declara sua renúncia. Com isso, fica legalmente indicado que assuma o vice-presidente eleito, João Goulart, do PTB. Jango, na visão dos militares, era tido como um comunista – mesmo que sua proposta política desenvolvimentista beire a social-democracia – e não poderia assumir. O gaúcho, para piorar sua situação aos olhos dos militares, voltava de uma viagem diplomática à China. Com a oportunidade, os militares da alta patente se aproximam do Congresso e aprovam um fechamento institucional que é solucionado com um acordo com Jango: ele assumiria como prevê a Constituição, mas seria sob regime parlamentarista.
Essa anormalidade foi estranha não somente pela ilegalidade, mas também pela intangibilidade do regime na tradição política brasileira. Em 1963, por iniciativa da situação, é convocado um plebiscito nacional com o tema do regime político. Ganhando com 82% dos votos, o Brasil volta a ser presidencialista, tendo João Goulart como líder legal.
Jango tinha um histórico relevante, principalmente ao lado de Vargas. Inclusive, foi seu ministro do Trabalho na década de 1950. Com isso, a direita mais conservadora, que ocupava espaços de poder no Clube Militar e na UDN, que detesta o legado varguista, volta a ameaçar o governo do presidente. Ao mesmo tempo, João Goulart tinha como eixo principal do governo a “Bandeira Unificadora” das Reformas de Base, um dossiê de propostas reformistas de reajuste estrutural de diversas esferas que competem ao governo, com o objetivo de humanizar e dinamizar a economia brasileira e o funcionamento da máquina democrática. Com isso, Jango defendia bandeiras como o direito irrestrito ao voto, incluindo analfabetos e soldados (que não votavam na época), a distribuição de lotes de terra na forma de propriedade privada rural (reforma agrária), uma reforma fiscal visando à distribuição da renda etc.
Comício da Central do Brasil / Wikimedia Commons
O governo de Jango foi marcado principalmente pela polarização política e ideológica. No cerne da Guerra Fria (e poucos anos após a vitória dos revolucionários cubanos em Havana, fazendo pairar ameaças exageradas da paranoia anticomunista), a sociedade, extremamente politizada à época, experimentou uma radicalização desta polaridade, que se traduz na série de manifestações e expressões públicas da sociedade civil em relação ao governo e suas opiniões, contra e a favor de Jango. Foi o momento, por exemplo, do Comício da Central do Brasil (que, junto da anistia presidencial aos marinheiros amotinados, alimentou o discurso direitista de que Jango era radical e imprudente demais para governar) dos janguistas e da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, exigindo intervenção militar contra o “comunismo infiltrado e antibrasileiro”.
Por outro lado, os militares estão inseridos num contexto de hipérbole da lógica da Guerra Fria. Versado na Doutrina de Segurança Nacional, o alto escalão das Forças Armadas estava estritamente associado à Escola Superior de Guerra do Panamá, órgão chefiado por órgãos da segurança dos EUA, em que os militares latino-americanos eram ensinados sobre a ideologia liberal americana, a doutrina de alinhamento com o país e a luta anticomunista. Com isso, há a formação de toda uma geração de mandatários militares que têm menos interesse na integridade institucional de seus países e mais no direcionamento ideológico e moral puxado a um nacionalismo conservador e autoritário.
Diante de todo esse contexto, migremos para o fatídico ano de 1964. Os conspiracionistas militares, mesmo que não de forma monolítica, tinham já entendido a suposta necessidade de derrubar João Goulart. Nessa lógica, no dia 31 de março de 1964 – hoje fazendo 55 anos –, o general Olímpio Mourão, do batalhão de Minas Gerais do Exército, pega uma série de tanques e ruma pela estrada em direção ao Rio de Janeiro. Lá havia um grande contingente populacional antijanguista, incluindo o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, ícone do antivarguismo. Mourão acumula contingente e apoio no Rio de Janeiro de Lacerda e na São Paulo de Adhemar de Barros.
Tanques chegam a Brasília / Wikimedia Commons
Do Rio de Janeiro, os tanques conspiracionistas se voltam a Brasília. Na virada da noite, os golpistas já tinham ocupado o Planalto e exigiam a saída de Jango, que, incapaz de reagir, foge da capital e vai para o Rio Grande do Sul, onde tem grande base de apoio. O Rio Grande do Sul, historicamente, se associou à defesa dos projetos ligados a Vargas e Jango, tendo Leonel Brizola como governador e defensor da “Legalidade”, ou seja, a manutenção dos mandatos democraticamente eleitos.
Porém, para além do uso de contingente militar contra um representante do povo eleito, está no momento de ocupação do Congresso Nacional o principal indício de ilegalidade desse processo. Com o recuo de Jango, o líder do Parlamento, Ranieri Mazzilli, associado à conspiração militar, declara vaga a Presidência da República, argumentando que o presidente abriu mão do cargo ao ter fugido e estaria fora do território nacional (supostamente Uruguai). Porém, Jango estava no sul do país e isso era fato conhecido. Ao assumir o cargo de presidente com esse argumento, Mazzilli rasga a Constituição de 1946 junto aos militares, dando fim a um ciclo político democrático iniciado com a queda do Estado Novo.
Mazzilli passa faixa para Castelo Branco / Wikimedia Commons
Com a vacância da Presidência, o Congresso convoca uma nova eleição indireta para declarar um indicado da junta militar como chefe de Estado. Elegem assim Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro presidente militar e membro da ala moderada entre os golpistas. Todo o processo vai envolver não somente o exílio de Jango, mas uma série de cassações em massa de deputados, governadores e membros de partidos políticos ligados tanto à esquerda quanto à direita. Até Carlos Lacerda, udenista de extrema-direita, foi perseguido pelos militares depois de um tempo. Logo no primeiro ano, a liberação de longas listas de cassação política remodelou a configuração das forças políticas no Estado. O PTB e o PSD passam a sofrer sanções governamentais claramente autoritárias. O calor do golpe atingiu até as Forças Armadas: além dos membros do Exército que eram de esquerda (Henrique Teixeira Lott se destaca, mas não era o único), hoje se calcula que mais de 6 mil militares, incluindo oficiais, foram afetados diretamente com as cassações e mortes do golpe.
Padres católicos tentam conter agentes da repressão / Wikimedia Commons
Ao mesmo tempo, o golpe envolveu uma confusão interna dentro da própria aliança golpista, em que pairava a dúvida sobre o retorno ou não da normalidade institucional dos anos anteriores. Castello Branco defendia o retorno do poder democrático às mãos civis, mas foi a ala ligada à “Linha Dura”, de Costa e Silva, que tomou as rédeas do processo e conduziu o golpe à instalação de um governo ditatorial que vai durar até 1985, com a morte de opositores, o fechamento do Congresso, a tortura sistemática e o uso de eleições indiretas para a manutenção do governo pelo Alto Escalão do Exército. Muitos morreram e desapareceram durante a ditadura (e não somente esquerdistas ligados à guerrilha) e a democracia brasileira até hoje é abalada pela desestruturação da democracia possibilitada pelo movimento vertical dos militares em 1964. Quando recomendaram a Jango que fechasse o Congresso para passar as Reformas, Jango recusou. A junta militar devia ter feito o mesmo.
Encerra-se com uma citação do presidente, general e ditador Ernesto Geisel sobre a alcunha de “golpe” ao movimento de 1964: “O que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções fazem-se por uma ideia, em favor de uma doutrina. Nós simplesmente fizemos um movimento para derrubar João Goulart. Foi um movimento ‘contra’, e não ‘por’ alguma coisa. Era contra a subversão, contra a corrupção. Em primeiro lugar, nem a subversão nem a corrupção acabam. Você pode reprimi-las, mas não as destruirá. Era algo destinado a corrigir, não a construir algo novo, e isso não é revolução”.
Parada militar acontecendo dentro de batalhão, em que se expõe no desfile um preso no pau de arara / Documentário ‘Arara’
PARA CONHECER MAIS, RECOMENDAM-SE ALGUMAS OBRAS BÁSICAS:
Marcos Napolitano, 1964: História do Regime Militar Brasileiro
Octavio Ianni, O Colapso do Populismo do Brasil
Carlos Alberto Brilhante Ustra, A Verdade Sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça
Glaucio D. Soares, A democracia interrompida (Partidos Políticos 1945-1964).
Paulo Evaristo Arns (org). Projeto Brasil Nunca Mais
Adriano Codato. O golpe de 64 e o regime de 68. História, Questões e Debates
Camilo Tavares: O Dia que durou 21 anos (Documentário)
Leon Hirszman. Maioria Absoluta (Documentário)
Felipe Cânido. Arara: Um Filme Sobre um Filme Sobrevivente (Documentário)
Em instantes o Blog do Barreto traz reportagem especial resgatando o contexto do Golpe no Rio Grande do Norte.
Um relatório a época confidencial mostra que na reta final da Ditadura Militar os políticos de Mossoró, leia-se família Rosado, causavam incomodo pelas ações sempre em prol dos interesses pessoais.
O documento elaborado pelo Ministério do Exército data de 30 de novembro de 1983 e se refere as eleições de 1982 e todo o processo eleitoral.
O material foi levantado pelo grupo de alunos de comunicação social que sob orientação do professor Esdras Marchezan estão pesquisando sobre a vida do jornalista Dorian Jorge Freire.
Logo no início do texto há uma avaliação da política do Rio Grande do Norte como algo próximo ao fanatismo:
“A política potiguar conserva características próprias, adaptadas aos tradicionais costumes políticos da região, destacando-se as acirradas lutas partidárias com participação intensa do povo, habilmente envolvido na época das campanhas eleitorais, atingindo por vezes, os limites do desvario”.
O relatório mostra que o PDS foi alvo de cisões motivadas por posições pessoais “desligados dos interesses partidários” por parte dos líderes locais.
O quadro político do Rio Grande do Norte é classificado como preocupante e corrupto.
“De um lado, o PDS experimentou sérias dissensões internas a defecção de algumas lideranças significativas (Vice-Governador CERALDO JOSÉ DA ÇÃMARA PERREIRA_DE MELO.; família ROSADO, do Oeste potiguar; Senador JOSÉ DE SOUZA MARTINS FILHO) decorrentes da forma discriminatõria e impositiva com que foi decidida, pela família MAIA, a sucessão do Governo do Estado, privilegiando o Sr JOSÉ AGRDMIO ex-Prefeito de NATAL. Viveu o RIO GRANDE DO NORTE um clima de corrupção em que seus dirigentes empregaram todos os meios (recurso públicos, poder de intimidação, empreguismo, etc) para concretizar seu objetivo de eleger seu candidato;
De outro, as oposições, lideradas pelo PMDB, com a defecção do PT, aliaram todas as correntes ideológicas disponíveis com o apoio do clero progressista para separar a opinião pública do Governo, denunciando e criticando sua atuação no campo social e econômico. O candidato mais forte das oposições foi o Sr ALUÍZIO ALVES, político cassado •ela Revolução e homem de principios duvidosos.”
Relatório apresenta uma avaliação do Jornal O Mossoroense como sendo de oposição ao Governo do Estado e dirigido por Dorian Jorge Freire classificado como “como elemento de esquerda”.
“”O MOSSOROENSE”, é um jornal local, de pequena tiragem e pouca popularidade fora de MOSSOR6/RN”, crava o relatório.
Em outro trecho os militares lembram que o jornalista Jaime Hipólito teria escrito no extinto Diário de Mossoró um Editorial sob orientação da família Rosado contra a “revolução”.
“O jornal “Diário de Mossoró”, após a Revolução de 1964, publicou editorial contra a REVOLUÇÃO e o EXÉRCITO e o autor do editorial teria sido o Dr JAIME HIPÕLITODANTAS, por ordem do “grupo” DIX-HUIT
ROSADO, VINGT ROSADO e VINGT – UM ROSADO. Quando rompeu a Revolução, DIX-HUIT ROSADO estava na CHINA COMUNISTA”.
Na sequência o relatório ainda registra que os Rosados se ausentaram do comício realizado nas eleições de 1982 com a presença do então presidente João Figueredo.
“. Na visita política realizada pelo PRESIDENTE DA REPÚBLICA ao RIO GRANDE DO NORTE, em Out 82, VINGT ROSADO, DIX-HUIT ROSADO e CAR LOS AUGUSTO DE SOUZA ROSADO (na época Presidente da Assembléia Estadual), não se fizeram presentes a nenhum evento relativo a viagem pre sidencial, devido ao desacordo na indicação de JOSÉ AGRIPINO MAIA como candidato ao Governo do Estado.
Durante a campanha eleitoral, a família ROSADO apoiou ostensivamente a oposição, a partir da imposição da candidatura de JOSÉ AGRIPINO MAIA ao Governo estadual, em flagrante contestação política a liderança exercida pelo Sr TARCISIO MAIA e pelo PDS”.
Ao final o relatório afirma que a família Rosado coloca os interesses pessoais acima dos interesses partidários:
“A situação política de MOSSORÓ caracteriza-se pela supremacia dos interesses pessoais sobre os partidários. O Deputado Federal VINGT ROSADO atua de forma a que seu grupo seja beneficiado, mesmo que •-, a tal tenha que realizar negociações e conchavos políticos”.
A análise do documento não leva em consideração interesses da população. A prioridade são as questões do PDS, partido que substituiu a Arena como legenda da Ditadura Militar.
Nota do Blog: várias das observações do relatório constam no livro Os Rosados Divididos que retrata exatamente este período quando estava em curso o processo de racha político no principal clã político de Mossoró.