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A vingança fantasiada na Rua do Patu

Por Gláucio Tavares Costa*

Na cara de homem não se bate. Homem se mata! Certificou a vítima ao seu algoz ao ser esbofeteada, ainda prometendo a si que não tiraria a sua barba enquanto não matasse o vil ofensor. No Carnaval de anos após o dia da agressão, fantasiado de caçador dos Caboclinhos, com espingarda em punho, quando a barba já escondia completamente o rosto, a vítima concretizou a sua vingança na Rua do Patu, em Ceará-Mirim, nos anos de 1950.

Atualmente em Ceará-Mirim no cruzamento entre a Rua Mussolino China, mais conhecida como a Rua do Sindicato Rural e a Rua Euclides Cavalcante, aquela que desce da Rua do SAAE até o Mercado da Fruta, encontra-se uma movelaria. Neste local, nos interessa lembrar que há cerca de oitenta anos era instalada a Bodega de João Granjeiro, na qual antes das variedades corria extenso balcão, cuja extremidade continha o recanto do consumo de cachaças, vinhos e conhaques, como de costumes nas bodegas daquela época.

Um dos frequentadores da mencionada mercearia era Antônio Mulato, cujo ofício, naquele tempo em que não havia sistema de abastecimento de água encanada, era botador de água, com a missão diária de encher barricas no olheiro situado às margens do Rio dos Homens, arrumar as pipas no lombo dos burros, subir a ladeira pela Rua do Burros, depois apelidada de Rua do Bacurau, certamente por conta da marcante campanha do ex-governador Aluísio Alves em 1960, e distribuir água pela cidade. Afora ser conhecido por tal serventia, Antônio Mulato tinha por marca a valentia e a insolência. Era do tipo que não levava desaforo para casa.

Como nas mercearias da época, na Bodega de João Granjeiro havia um caderno para anotar as compras feitas com promessa de pagamento adiante. Entre essas anotações estava o nome de Antônio Mulato, que certa feita estava bem atrasado com os seus compromissos creditícios, sendo pertinente para o comerciante frustrar novas compras à míngua de pagamento das antecedentes registradas no caderno dos fiados. Nestas circunstâncias de velhacaria, Antônio Mulato chegou na Bodega de João Granjeiro e requisitou uma dose de cachaça. Contudo, não olvidando da dívida em demora, o bodegueiro negou a pinga, condicionando: “para beber aqui ou você paga a dose ou paga a conta.”

Neste ensejo, Antônio Mulato recebeu a rejeição do seu pedido de beber cachaça fiado como grave ofensa e de pronto, desferiu um tapa no rosto de João Granjeiro, que imediatamente teve todas as veredas neuronais atiçadas pelo bofete, articulando-se os humores do corpo de forma a produzir e elevar os sentimentos de ira, de indignação e de fúria ardente. Diagnostica-se que o sangue ferveu, mas que, no entanto, teve por travão de um embate corpo a corpo com ofensor o temor do histórico de brigas e desacatos do corpanzil de Antônio Mulato. Mesmo assim, o ultrajado comerciante, ainda atordoado, num impulso de valentia, advertiu: na cara de homem não se bate. Homem se mata!

Na ocasião da confusão, havia outras pessoas presentes na mercearia e na calçada da venda, vindo a intervir a turma do deixa disso, levando Antônio Mulato para fora da bodega e para mais além. Do lado de dentro da mercearia, a injusta agressão deflagou sentimentos abjetos em João Granjeiro. A dor física era imperceptível, mas a dor moral era excruciante e persistente. Ao se ver no espelho após o insulto, com o rosto avermelhado, a vergonha de ter a sua reputação enxovalhada levou a uma promessa insólita: “de agora em diante, só vou tirar a barba quando matar Antônio Mulato”, sentenciou João Granjeiro.

Solidariedade de muitos vieram em conforto à vítima, que, no entanto, mantinha incólume a cólera, eis que o tapa na cara constitui especial falta de respeito e violou profundamente a dignidade. Decerto, a mãozada no rosto feriu mais do que mil chutes e bofetes em outras partes do corpo. Quando desses trágicos episódios, normalmente a vítima não se recorda da nobre lição de Jesus Cristo talhada no Livro do apóstolo Mateus: “Se alguém lhe der um tapa na face, ofereça o outro lado para ele bater também.” João Granjeiro não atentou para tal ensinamento e nem o passar do tempo aplacou o seu enfurecimento: a vingança é um dos sentimentos mais poderosos.

Passados anos do fatídico dia, os fios da barba de João Granjeiro já estavam enormes. Maior do que a barba só o persistente desejo de vingança, que somente não fora consolidada ainda porque lhe era desfavorável um confronto direto com Antônio Mulato, que além da compleição física avantajada, era acostumado a brigas e querelas, nas quais sempre levava vantagem. Desta feita, era preciso para o sucesso da vindita, quem sabe uma emboscada, ardil ou um disfarce?

Se aproximava o Carnaval de um daqueles anos da década de 1950, quando haveria a apresentação dos Caboclinhos, caracterizado pela encenação de vigorosas coreografias em ritmo marcado pelo estalido das preacas, espécie de arco e flecha de madeira. Na dança folclórica, grupos fantasiados de índios que, com vistosos cocares, adornos de pena na cinta e nos tornozelos, colares, representam cenas de caça e combate, os nativos revoltam-se contra um caçador, matando-o ao final da exibição. A vítima vislumbrou nesta particularidade carnavalesca a oportunidade de sair armado pelas ruas, sem chamar atenção. Para tanto, a vítima cuidou em adquirir uma fantasia de caçador. Logo, estavam prontos o macacão, o chapéu, o suporte do carregador, o alforje e a espingarda.

Os preparativos da vingança ainda estavam incompletos, eis que faltava municiar a espingarda, razão pela qual a vítima ressentida foi até a Rua do Patu, nas proximidades do SAAE, na Oficina de Zé da Luz, onde adquiriu pequenos fragmentos de ferro, perguntando ao oficineiro se três bolotas de ferro eram suficientes para matar um veado quando arremessadas por uma espingarda de soca. A reposta foi positiva.

Tudo estava pronto para a vindita. Chegou o Carnaval.

Os Caboclinhos apresentavam-se no final da tarde da Rua do Patu, nas proximidades do Bar de Dona Alice, em frente a Escola General João Varela. Na tradicional coreografia folclórica, os índios investem contra um caçador que invade o paraíso dos nativos.

O disfarce de caçador coube a João Granjeiro vestir, depois de carregar cuidadosamente a espingarda de soca, com a pólvora, a limalha, dentre as quais se arrumou as bolotas de ferro. Na fantasia de carnaval, agregava-se a longa barba esculpida pela promessa de vingança e um certo tropeço aqui e acolá a fingir uma embriaguez, com aptidão de afastar desconfianças acerca do intuito vingativo. E de fato ninguém imaginou que João Granjeiro subia na Rua do Patu a procura do seu algoz, ao meio das festividades carnavalesca.

Imbuído da ideia de dente por dente e olho por olho, o caçador tal como uma águia faminta, com visão aguçada pelo desejo de vingança, avistou de longe a sua caça, que se encontrava festejando o Carnaval, tomando uns bons bocados no Bar de Dona Alice, onde depois se instalou a Lanchonete de Dona Santa e atualmente é uma açaiteria, na esquina do encontro entre a Rua do Patu e a Rua Manoel Marques, mais conhecida como a Rua do Enéas. Numa das mesas do bar estava Antônio Mulato, já flertando com estado de embriaguez, contemplando o Carnaval. Ao perceber a distração da presa, uma certa altivez cresceu em João Granjeiro, que teve a perspicácia de passar direto pelo outro lado da rua, a procura da melhor posição para abater a infame caça. Arrodeou a presa, cruzou a rua entre o vai e vem dos foliões, aproximou-se do bar, rente a parede exterior do prédio, esperou Antônio Mulato dirigir toda atenção às alegorias carnavalescas em desfile na rua, quando então aprumou a espingarda e atirou, atingindo de cheio o odiado inimigo.

As bolotas de ferro e demais detritos deflagrados da arma de fogo rasgaram à queima-roupa o corpanzil de Antônio Mulato, causando-lhe imediata hemorragia e concomitantemente o despertar da fúria, quando olhou no olho do atirador, reconhecendo João Granjeiro ainda que no escondedura de caçador com o rosto encoberto pela longa barba. Antônio Mulato, muito ferido, ainda conseguiu levantar-se e correr, deixando um rastro de sangue, na perseguição do atirador. João Granjeiro partiu primeiro, imaginando que as bolotas de ferro não teriam sido suficientes para abater Mulato, que, por sua vez, no ínterim do encalce de João Granjeiro, foi faltando-lhe oxigênio e força à proporção que deixava porções de sangue no caminho, até que João Granjeiro, em sua aflita fuga, deixou cair a espingarda, que fez Antônio Mulato tropeçar e cair pela derradeira vez na vida a demonstrar que a vingança suplantou a valentia nas proximidades da Oficina de Zé da Luz, de onde se adquiriu as mortíferas bolotas de ferro.

Esta história foi-me contada pelo senhor Augusto Cavaco em um dos dias do Carnaval de 2022 na Praia de Jacumã. Adverte-se que boa parte deste conto é mera ficção, obra de criação literária.

*É Assessor Jurídico do TJRN, mestrando em Direito pela Universidad Europea del Atlántico, graduado em Farmácia pela UFRN e cronista.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Conto ingrato de Natal

Por Olavo Hamilton*

Trinta anos depois, no dia do seu casamento, diante da mesma Catedral, haveria de lembrar daquela noite de Natal em que seu pai o levou ao centro da cidade para fazer caridade e pregar a Palavra.  Tinha apenas dez anos de idade, mas jamais esqueceria o olhar cheio de gratidão, das lágrimas de emoção e esperança de que caiam naquela face sofrida e desabrigada.  Dali em diante, sua alma serviria fervorosamente à obra e aos propósitos do Senhor.

Aquele gesto de caridade aplacou um sentimento de culpa que havia precocemente em seu âmago: questionava o porquê dele, privilegiado, ter tanto enquanto alguns, quase nada.  Seu pai, sensível às dores existenciais da humanidade, tratou de lhe sossegar o coração.  Citou Madre Teresa de Calcutá, lembrou que “há algo de bonito em ver os pobres aceitarem o seu destino”, assim como Jesus fizera – “o mundo ganha muito com o sofrimento deles”, assim como ganhou com o sofrimento de Cristo.  – Há um Jesus Cristo em cada pobre – completou a mãe.  Essas palavras foram de consolação e transformação – Existe razão e bondade na pobreza – pensou o menino.  Tratou de separar o de melhor na ceia de Natal preparada pela mãe e recordou daquele dia em que esqueceu a lancheira da escola e teve fome – Repeti o almoço duas vezes, eu lembro!  E reforçou generosamente a marmita.

O sino da Catedral acabara de tocar, 20h do dia 24 de dezembro de 2023.  O pobre moribundo já se recolhia ao banco para dormir, quando avistou aquele carro suntuoso que costumava trafegar no centro da cidade.  Mas dessa vez havia algo de humano no automóvel.  Desceu um casal e um menino, pareciam anjos vestidos de branco.  O cheiro da comida lhe chegou antes, no mesmo tempo em que seu cheiro chegou aos visitantes.  Recordou daquele dia em que fez a última refeição de verdade; tinha uma semana.  Até tentou, mas não conseguiu sorrir.  Há muito não conseguia sorrir.

O grupo o cumprimentou gentilmente, de uma forma acolhedora, mas o pobre diabo nem notou, nunca fora acolhido antes.  O homem lhe tomou a mão e perguntou se podiam rezar por ele, no que assentiu imediatamente, embora lhe incomodasse profundamente segurar a mão de alguém.  Sob os olhos cegos de Santa Luzia, que a tudo vê, sentiu grande vergonha, pois lhe interessava mais a marmita trazida pelo menino do que as orações que lhe dirigiam.  Então se concentrou e conseguiu compreender algumas palavras: “os últimos serão os primeiros”, “os humilhados serão exaltados”…  lançou um olhar profundo para o garoto e não conseguiu lembrar de quando era criança… havia sido criança algum dia?  Teve imensa inveja e revolta.  Tentou, mas não conseguiu conter as lágrimas.  Lágrimas de ódio!  Só desejava que o grupo, cuja felicidade, como um câncer, era arrebatadora e não contagiante, lhe deixasse a comida e fosse embora, o que não tardou a acontecer.  Mal deram as costas, abriu a marmita e avançou com as mãos sobre a ceia.  Sentiu um gosto diferente.  O gosto agridoce da fome saciada e da humilhação.

*É advogado e professor da UERN.

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A festa da morte: um conto sobre as consequências de escolhas erradas feitas pela Administração Pública

Por Gláucio Tavares Costa*

Na certidão de óbito do senhor Brasileiro da Silva, pedreiro, constava como causa da morte edema pulmonar e aterosclerose decorrentes de hipertensão arterial sistêmica.

No dia da morte do senhor Brasileiro da Silva, estava sendo comemorado o aniversário da emancipação política do município onde ele residia com sua esposa e quatro filhos. Nessa ocasião, o prefeito contratou o famoso cantor sertanejo Gustavo Lima por R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais), o popular Wesley Safadão por R$ 700.000,00 (setecentos mil reais) e a banda Aviões do Forró por R$ 300.000,00 (trezentos mil reais). Os artistas locais foram completamente desprezados.

No final da tarde daquele dia, apesar de ser feriado no município, o senhor Brasileiro sentiu um leve aperto no peito, que foi ficando mais forte a cada instante. Ele tentou esconder as dores de sua família o quanto pôde, mas com a crescente falta de ar, acabou demonstrando sinais de mal-estar. Então, foi levado ao hospital municipal, que estava superlotado, sem farmacêutico e contava apenas com um médico, um enfermeiro e dois auxiliares de enfermagem para atender vários casos de urgência ao mesmo tempo. Isso resultou em um atendimento tardio ao senhor Brasileiro, que, aliado à falta de medicação para tratar a crise aguda de hipertensão na unidade hospitalar, levou à morte do pedreiro que anteriormente trabalhara na construção do hospital municipal.

A senhora Nordestina da Silva, agora viúva do pedreiro, explicou ao médico que, devido à infelicidade de sua máquina de costura quebrar, estava extremamente angustiada, pois o casal não tinha dinheiro suficiente para comprar a medicação prescrita para amenizar as consequências da hipertensão arterial do falecido marido, nem para tratar sua grave diabetes. Além disso, essa medicação sempre estava em falta nas farmácias das unidades de saúde do município.

A morte do senhor Brasileiro foi alimentada diariamente pela falta constante de medicamentos para o tratamento de sua hipertensão arterial, consumindo-o no trágico dia do show milionário financiado pelo município.

Os quatro filhos do senhor Brasileiro da Silva estavam prestes a sair para a festa milionária quando ele chegou em casa, ainda escondendo a dor no peito. Eles só souberam da morte do pai quando o show de Gustavo Lima terminou.

Os valores gastos com os cachês e a estrutura do show milionário foram obtidos pela redução dos recursos destinados à compra de medicamentos, contratação de profissionais de saúde, bem como pela restrição dos gastos com merenda escolar e pagamento de professores.

Muitas pessoas comemoraram a morte do senhor Brasileiro da Silva sem saber.

*É analista judiciário do TJRN e mestrando em Direito pela FUNIBER.

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Um gato, um Porto, um xerez e um livro

“[…] Mas, de vez em quando, o gato tem sido um fator genuíno no êxito de uma peça. Justo antes de que caísse o pano, terminado o primeiro ato de uma comédia no Teatro Wallack, de Nova Iorque, o gato do teatro caminhou lentamente pelo cenário, que estava disposto como uma sala de estar, sentou-se em frente à lareira e principiou a assear-se. O toque realista resultou arrebatador, e, se David Belasco houvesse estado ali, ter-se-ia retorcido agonicamente de inveja, por não o ter introduzido em alguma peça sua. Quando o elenco saiu para agradecer, houve gritos chamando o “menino”, e os aplausos recrudesceram quando este apareceu nos braços da atriz do espetáculo. O produtor decidiu, de imediato, que o felino devia converter-se num ator permanente, mas, quando o chamaram para ensaiar na manhã seguinte, os resultados não foram satisfatórios. Óbvio, o gato se negava a tomar parte num absurdo como esse.”

 

El Tigre en la Casa. Una Historia Cultural del Gato

(Carl Van Vechten)

 

“Uma brisa mais suave fazia flamejar os mantos bordados. O de Gaspar era de púrpura de Corinto.”

 

La Adoración de los Reyes. El JardínUmbrío. Historias de Santos, de Almas en Pena, de Duendes y Ladrones

(Ramón del Valle-Inclán)

“Mas, acima e além, há um nome que ainda resta,

Este de que jamais ninguém cogitaria,

 

O nome que nenhuma ciência exata atesta

– SOMENTE O GATO SABE, mas nunca o pronuncia.

Se um gato surpreenderes com ar meditabundo,

Saibas a origem do deleite que o consome:

Sua mente se entrega ao êxtase profundo

De pensar, de pensar, de pensar em seu nome:

Seu inefável afável

Inefanefável

Abismal, inviolável e singelo Nome.”

O Nome dos Gatos

Obra Completa. Volume I. Poesia. Tradução de Ivan Junqueira

(T. S. Eliot)

 

 

“El vino de Jerez, remoza la vejez”

(ditado andaluz)

“O vinho de março fica no regaço; o de abril vai ao barril; o de maio é para o gaio”

(ditado duriense)

Por Jessé Alexandria

A frase, dita assim, sem pretensão nenhuma de professar filosofia algo existencialista, nem de criar um chiste, nem de sufragar uma ironia, foi do absurdo à ambiguidade, e desta à sensatez, segundo esse meu modo de entender o mundo racionalmente. Ouvi-a durante a noite em que fiz mais um passeio noturno ao Parque Rio Branco. Na volta da caminhada, numa noite de clima fugidiço, entre tépido e ameno, antes do início da estação invernosa, pois recordo que íamos pelo fim de maio, sem que eu possa hoje fixar data precisa, porquanto já se vão muitos anos de permeio, Dona Aracy, vizinha da casa em frente, em cuja calçada nos encontrávamos, fez a seguinte observação: “Assim como são as pessoas, são os seres humanos”. Ela não se referia a pessoas comuns como nós (depois veremos que aludia a pessoas especiais, misteriosas), enquanto dava água e comida a um pequeno bando vadio que a visitava todas as noites. E ia ela, com a verdade moral de seu aforismo inabalável, pondo água nos potes de margarina e ração nas latas de goiabada, antes vazios e escrupulosamente limpos, contando-me sua relação pessoal com cada um dos visitantes noturnos:

— A Indomada, aquela sialata, não aceita carinho nenhum. Nenhum afago, nenhum toque nas costas, nada! Sofreu muita violência dos seres humanos. Mas é muito miona. Já a Vesga, que é essa siamesa de olhinhos trocados, não deixa que toquem nas costas nem na cauda dela, mas se deixa acariciar na cabeça. É completamente muda, nunca escutei ela miar, mas morde que é uma beleza, basta estar com raiva. O Austero, esse tigrado, todo compenetrado, mia a prestação, na maior solenidade. São sempre dois miados por noite, no começo e no fim do expediente, por isso, às vezes, eu chamo ele de Funcionário: bate o ponto quando chega e quando vai embora. Mas ele se deixa acariciar, e até vem pedir um pouco mais de carinho, quando falta chamego.

— E eles comem e bebem tudo? — lhe pergunto.

— Tudo, sempre. Não deixam nenhum farelo de ração nem quase nenhuma gota d’água. Vêm sempre morrendo de fome e de sede. O ruim de tudo isso é que, com o passar do tempo, me afeiçoo, e alguns deixam de vir, somem. Aí começo a pensar que ou morreram atropelados, ou envenenados; ou foram adotados. A saudade dói em mim feito a ciática. Procuro me convencer da segunda hipótese, que eles encontraram um lar. E fico imaginando que estão bem aquecidos, gordos, refestelados no sofá de uma casa grã-fina, ou vivendo numa casinha de madeira, construída numa árvore no quintal de uma dessas casas chiques de condomínio, com uma escadinha pra subir até ela. Fico com o final feliz, como nos filmes de minha época de moça. Mas, de vez em quando, recebo uma notícia ruim: que um deles foi atropelado e tá sendo pisoteado por uma infinidade de rodas de carros na Avenida Pontes Vieira, perto daqui. Às vezes vou ver, pra ter certeza de que é realmente algum deles, vindo sei lá de que lugar desse parque aqui perto, pois eu sei que eles vão ali namorar. Vez por outra, volto no meio do caminho, porque me falta coragem pra ver a carnificina. As pernas tremem tanto, que não consigo prosseguir. Outro dia, quando voltava do mercado, encontro o Gaspar morto, no pé da calçada. Algum cristão tirou ele da rodagem e deixou na sarjeta. Aí, fui tocar nele e ainda senti o corpinho dele quente. Ele tá enterrado no quintal daqui de casa. Tem uma cruz pequena, púrpura e dourada, com uma inscrição na lápide. Fiz uma homenagem a ele. Foi a morte mais sentida. Sinto até hoje, me dói muito, bem aqui dentro — aponta para o peito, e prossegue:

— Mas tem um lado muito bom nisso tudo: é que esses danadinhos me fazem companhia durante esse período da noite, que é quando eu me sinto mais sozinha — afaga o dorso de um gato tigrado, meio malhado por baixo da pelagem, que a rodeava, chamado Coquetel, batizado com esse nome por causa das palavras-cruzadas, o maior passatempo dela.

— Por que Gaspar?

— Por que Gaspar? Nunca vi alguém ser mais Gaspar do que ele. Eu chamei ele de Gaspar, o Rei Mago, porque era meio arruivado, e ele me atendeu. Parecia que sempre foi o nome dele. Então, Gaspar ficou. Ele tinha algo especial. Não que os outros não tenham, mas ele tinha algo mais especial ainda. Ele me compreendia. Nunca me respondeu falando, claro, senão eu estaria louca, mas ele me respondia miando ou fazendo algum gesto, e eu compreendia sua linguagem, cada vez que eu contava pra ele alguma reclamação minha, alguma mágoa de família, alguma falta de alegria, alguma queixa dos meus filhos, que nunca me visitavam. Então, certas vezes, ele me respondia, dizendo assim: “Não se preocupe, o Júnior vem esses dias, fique tranquila”. E, poucos dias depois, eu escutava a campainha tocar sete vezes (tã-tã-rã-rã-tã… tã-tã!) e pensava: “Ah, é o Júnior! Bem que o Gaspar disse”. E era. E o meu filho sempre parecia estar melhor do que quando aparecia sem o Gaspar me avisar. Quando o Gaspar me avisava, era como se fosse um presente, a visita do meu filho. Tudo era maravilhoso. O Júnior colocava música romântica na vitrola. Roberto Carlos, Nat King Cole e boleros, quase sempre. Às vezes, Altemar Dutra, pois a gente adorava Serra da Boa Esperança e eu sabia a história da canção do Lamartine Babo, que meu filho havia me contado. Eu fazia macarronada com molho pesto, e ele adorava. O Júnior cantarolava, vinha sem problemas com a noiva, sem contas pra pagar, sem dores estomacais, que ele quase sempre sentia por causa da gastrite. Ah, ele vinha leve, me abraçava, me trazia um perfume. E dançava todo tipo de música como se fosse uma valsa. Qualquer uma, podia ser um tango ou um samba-canção. Me tirava pra dançar, bailava comigo, ainda que eu resistisse de mentirinha, pois eu falava de propósito, sabendo que era em vão: “Não, Júnior, seu bobo! Não quero!” Ah, eu adorava esses dias. Serra da Boa Esperança, esperança que encerra — Dona Aracy canta com voz afinada e terna — No coração do Brasil, um punhado de terra. No coração de quem vai, no coração de quem vem, Serra da Boa Esperança, meu último bem. Parto levando saudades, saudades deixando… Não é linda? Era como se aqueles dias não fossem terminar nunca. Mas passavam tão depressa.

— E atualmente, seu filho visita sempre a senhora?

— Não, agora não. Ele se mudou pro sul, faz uns três anos. Mora em Joinville. É gerente de uma fábrica têxtil. Adiou, esses dois últimos anos, a vinda aqui. Agora é o contrário: eu fico pensando que os dias longe dele vão demorar pouco, mas duram uma eternidade. Eu entendo: ele precisa pagar as contas da mudança, dos móveis novos, do enxoval pro casamento. Eu compreendo. Mas compreender não mata a saudade. Na verdade, você sabe, nada mata a saudade. A saudade parece ser uma das poucas coisas eternas. E, mesmo quando a gente desaparece, ela se perpetua.

E continua lembrando Gaspar:

— O Gaspar tinha uma coisa que nunca vi em gato nenhum. Ele era mais educado que gente! Ele nunca comia antes das damas. Nunca. Olha, ele esperava que todos comessem e bebessem. Na verdade, mesmo pros gatos, ele cedia a vez. Ficava naquela postura elegante, de gato, sabe?, pensativo, observando tudo, com as patas da frente firmes, retas, as de trás dobradas, com a cabeça bem assim, olhando por cima de todos. Achava tão interessante isso dele. Aí, conversava com ele: “Gaspar, você não vai comer não, menino?” Ele me respondia, passando a língua na pata esquerda, quase toda vez que eu perguntava isso. Era incrível. Isso significava que eu não devia insistir, que ele ia esperar pra comer depois de todos. E, sabe, ele era como um inspetor de supermercado, ou um chefe de cozinha: cheirava tudo, olhava, provava com a língua, parece que conferia se estava tudo em ordem, se as coisas estavam limpas. Como na Bíblia Sagrada. Na Bíblia, Gaspar era o mago que inspecionava tudo.

— Que interessante. Não sabia que Gaspar era ruivo nem que era um mago inspetor.

— Era. Já li isso em algum lugar, não na Bíblia, acho que foi num almanaque, há muito tempo. O nome dele significa isso: inspetor. A Bíblia conta que ele era ruivo ou loiro, não me lembro. Se bem que esse tempo da Bíblia é tão antigo, que a gente não pode nem saber o que eles entendiam por ruivo e loiro. Em alguns livros antigos, o mar tinha cor de vinho, imagina a cor do cabelo. Mas o meu Gaspar era assim mesmo, era desse jeito, com esse temperamento, esse comportamento. Tenho umas fotos dele lá dentro, depois lhe mostro, pra você ver como ele era bonito.

— Quero ver, sim. A senhora tem outros filhos, Dona Aracy?

— Tenho uma filha. Juliana.

— Eu creio que nunca vi sua filha por aqui. Ela também mora fora da cidade?

— Não, mora a cinco quarteirões daqui, mas é uma pessoa muito ocupada, meu filho. Ela é médica, dermatologista. É uma pessoa que não tem tempo nem pros filhos. São dois, um casal. Alfredinho e Fernanda, a mais velha. Alfredinho é tão bonzinho. Fernanda é uma moça bonita. Fico até triste, porque eles precisam muito da mãe e do pai. O pai também é um homem muito ocupado, se chama Alfredo, e as crianças ficam muito com a empregada. O pai também é médico e viaja muito pro interior e pra outras capitais, é também professor da Universidade Federal. É neurocirurgião. Eles são pessoas com a vida preenchida, como a minha filha me diz.

— E seu esposo, Dona Aracy?

— Sou viúva, faz dez anos que Vicente me deixou. Foi rápido. Um ataque cardíaco. Demorou que eu superasse a perda, sabe? Minha companhia agora são esses meninos e meninas.

Se aproxima da velha um gato preto, grande e peludo.

— Este é o Don Juan, o namorador da turma. Muitas vezes, quando chega aqui, é todo lanhado, com a cara arranhada, unhada pra todos os lados. Vive brigando pelas gatas do bairro. Deve ter uns cem filhos, né, menino? — e sorri, afagando a cabeçorra de Don Juan, que faz uma meia-volta e torna a se esfregar na perna da velha, miando dengosamente.

— Ele se chama Don Juan porque é namorador, Dona Aracy? Eu acho interessantes os nomes que a senhora colocou nos gatos.

— Não só por isso. Don Juan porque ele se parece com o ator dum filme que vi na tevê. Não me lembro agora do nome do rapaz garboso, todo lorde. Tem uma cena que ele usa uma máscara preta, que só me lembra esse gato. Porque o meu Don Juan, não sei se você reparou, tem umas manchinhas acima e abaixo dos olhos, que parecem uma máscara. Olha aqui — empurra a cabeça do gato pra cima, pelo queixo, devagar e levemente, com a ponta dos dedos, mostrando as manchinhas.

— Verdade, não tinha reparado. O ator que a senhora fala se chama Johnny Depp — recordo-lhe o nome do astro do filme.

— Esse mesmo, meu filho, esse mesmo. E aquele bigode lindo dele parece o do meu preto aqui — e ri. — Um bigodão!

Don Juan põe o rabo em alerta e vai lamber uma gata caramelo, que não havia, até então, parado de comer.

— Aquela é a Isabel Cristina — aponta. — É a princesa daqui. Toda majestosa, principesca ela, parece a dona do pedaço. É quase, pois, na verdade, a rainha é a mãe dela, aquela que tá com uma feridinha na coxa — e aponta para uma gata branca, já velha e de pelo aqui e ali falhado, que se deitou entre a filha e Don Juan.

— A Isabel Cristina é a princesa, e a rainha é a Teresa Cristina. São bem diferentes no temperamento, não só nas cores. Enquanto a filha é espevitada, brigona e louca pelo Don Juan, a mãe não quer saber de gato nenhum. Só queria saber do meu Gaspar. É a viúva recatada. Elegante que só ela! Quer dizer, mais ou menos viúva, pois eu não tenho certeza se o verdadeiro marido dela morreu.

— Eita, Dona Aracy, só me falta existir por aqui um Imperador D. Pedro II também.

— Pois não falta não. Tinha sim, meu filho, um D. Pedro. Mas, por incrível que pareça, o D. Pedro, caramelo como a Isabel Cristina, era o marido da Teresa Cristina, e o Gaspar era o amante. A Teresa Cristina nunca ligou para o D. Pedro, nunca. Era uma relação conjugal, sem amor nenhum. Ela amava, de verdade, o meu Gaspar.

— E como a senhora sabe que eles eram casados, D. Pedro e Teresa Cristina, e Gaspar era o amante, e não o contrário?

— Ora, pelos filhos. Todos os filhos dela eram do D. Pedro: ou gatos brancos, ou gatas caramelo, ou mesclados. Ela nunca teve filhos com o Gaspar. Fora do casamento, nunquinha — estala a língua no céu da boca, reforçando a negativa. — Mas era só o Gaspar chegar, que ela se lambia toda, tomava seu banho, se emperequetava toda pra ele. E o D. Pedro ficava furioso, ameaçava o Gaspar com aquele chiado, mostrando as presas. E o Gaspar… nem aí — faz um gesto, dobrando os dedos da mão sob o queixo, jogando-a para fora. — Ignorava.

— Não acredito — falo em tom de surpresa, mas de credulidade.

— Pode acreditar. Assim como são as pessoas, são os seres humanos — e despejou de sua jarrinha água suficiente para encher as latinhas de margarina que havia colocado um pouco afastadas da comida, sem notar que eu, cartesianamente, não encontrava razão nenhuma para tal comparação inusitada entre pessoas e seres humanos. Talvez um gracejo, imaginei, após pensar que pudesse ser uma formulação com algo de ironia existencialista sobre nós, pessoas, humanos, e não sobre os gatos.

— Sabe — continuou Dona Aracy —, os gatos não gostam que a gente coloque a comida perto da água, tem que ser um pouco longe. Eles não gostam. É como se alguém pusesse no seu prato, quando fosse servir você, a carne em cima do feijão. A carne tem que estar do lado do arroz ou da salada, sempre. Nunca do lado do feijão.

— Verdade — sorrio, pois esse é um costume que mantenho. — Mas onde tá D. Pedro, Dona Aracy?

— Não sei. Se a vida dos gatos imita a dos seres humanos, deve estar em Paris, exilado — e ri, mostrando a gengiva e os dentes ainda fortes para alguém daquela idade. — Pode ser que tenha sido adotado por um casal que estivesse de mudança pra Cidade Luz, fico aqui imaginando — acrescenta, fazendo um gesto com os lábios, o inferior sobre o superior.

— Quem sabe? — respondi, lembrando-me de que já era tarde e deveria regressar do meu passeio noturno.

Mas Dona Aracy puxa conversa:

— E sua esposa, já descansou?

— Não, o parto tá marcado pra semana que vem.

— Já sabe o sexo do bebê?

— Sim, claro. É uma menina. Helena.

— Nem precisava perguntar pra você. Nos dias de hoje, ninguém espera a criança nascer pra saber. As pessoas compram logo o enxoval, têm que escolher a cor rosa ou azul, essas bobagens. E com essa tecnologia toda, quem vai deixar de saber, né? As pessoas são curiosas, ansiosas, não vão esperar. Não é mais aquela história de que cada coisa tem seu tempo. Não, cada coisa tem o tempo da gente, dos seres humanos. Fico imaginando, comparando com os gatos. Gata sabe lá se vai ser menino ou menina! Aliás, meninos, meninas ou meninos e meninas. Sabe nada! E tanto faz! Você já viu uma gata parir? É muito feio. Mas, depois que nascem, elas deixam tudo limpinho. Não é que nem cachorro. E os filhinhos, miudinhos, coitados, feinhos, são tão bem cuidados. Os doentinhos, elas matam, né?, você sabe! É a natureza, meu filho… ela é sábia, não quer deixar os bichos sofrerem. Eu, por exemplo, quem vai cuidar de mim, se eu tiver Alzheimer? Minha filha, ocupadíssima, que nem cuida dos filhos? Meu filho caçula, que tá sei lá a quantos quilômetros daqui? Vou pro asilo de velhos? — e seu semblante muda, e seus olhos se enchem de lágrimas.

— Não, Dona Aracy, não diga isso. Tenho certeza de que um deles cuidará da senhora, mas tenho mais certeza ainda de que a senhora não vai ter essa doença não.

— Não tenha tanta certeza, meu filho. Essas coisas acontecem com os velhos. Tenho oitenta anos, já vi todas as minhas amigas morrerem. Outro dia eu estava na cadeira de balanço, na minha varanda, e, de uma hora pra outra, eu me esqueci do nome do Gaspar. Isso faz uns meses. Fiquei sem saber, procurando, procurando, e, de repente, me veio a música que cantava pra ele. Aí me lembrei do nome dele. Chorei, chorei, chorei, muito, muito. Tanto quanto no dia que encontrei o Gaspar na sarjeta.

— Mas isso acontece, Dona Aracy, ocorre com qualquer um, esse esquecimento.

— Não, o Gaspar era um membro da família, como um filho. Como você se sentiria se esquecesse o nome da própria filha? E não foi por um instante, foi por um minuto, dois, talvez mais. Ah, veja só, já me esqueci até do seu nome — arqueia as sobrancelhas, perscrutando a memória.

— Pedro.

— Pedro, é mesmo, você me disse outro dia. Nome bonito, bíblico.

— E qual foi a música que a senhora lembrou pra lembrar o nome dele, do Gaspar?

— Depois lhe digo, senão agora eu choro, porque é como se o Gaspar estivesse e não estivesse mais aqui. Não sei se você me entende.

— Claro, entendo. Mas a senhora gostava, quer dizer, ainda gosta tanto do Gaspar, por que não trouxe ele pra morar com a senhora?

— Mas eu tentei, meu filho, tentei várias vezes. Falei tanto pra ele: “Gaspar, meu Gaspar, venha morar comigo, aqui você vai ficar melhor do que na rua… por aí, passando frio, o perigo de um carro atropelar você, ou alguma pessoa malvada colocar veneno na comida e você morrer envenenado, sozinho…” E ele nada respondia. Nada, nunca disse nada. Ficava me olhando, os olhos tristes, porque os olhos do gato também se entristecem, sabe? Não sei se você já notou isso. Poxa, mas ele não ficava aqui, de vez. Não dizia por que nem pra onde ia. Só chegava assim, à noitinha, logo depois que a Teresa Cristina chegava com os filhos. Às vezes acho que ele queria dizer por que motivo não ficava, mas daí desistia, não falava nada, ficava assim capiongo, como dizia minha mãe. Aí, depois ia pra perto da Teresa Cristina, e tudo era esquecido. Assunto encerrado. Até eu ter coragem de pedir novamente pra ele ficar.

— Sei.

— Mas, tempos depois, descobri por quê.

— Jura? E por quê?

— Porque o Gaspar tinha família, morava a cinco quadras daqui, casa própria. Você sabe que a casa é deles, né, dos gatos? Mas eles deixam a gente usufruir das coisas.

— Verdade.

— Mas sabe na casa de quem ele morava?

— Não, não tenho a menor ideia.

— Da Juliana, minha filha.

— Não acredito, Dona Aracy! Que coisa incrível!

— Pois acredite. É a pura verdade! Talvez seja por isso que ele procurou minha casa, que ele tinha aqueles olhos tristes, que vinha me visitar e, silenciosamente, me olhava, como se quisesse me dizer alguma coisa.

Dá uma pausa no relato, depois continua, reflexiva:

— E eu sei o que ele queria me dizer.

— E o que ele queria lhe dizer, Dona Aracy?

— Que minha filha me amava, mas não sabia como. Não sabia me dizer, minha filha não conseguia me dizer, mas me amava. Então, o Gaspar me dizia com aqueles olhos.

Assenti com a cabeça e com o olhar, sem poder responder com palavras, que me escaparam, e sem entender como Dona Aracy chegou a essa conclusão.

Ela continuou:

— Você deve estar se perguntando: “Mas como é que D. Aracy não sabia que a filha dela criava o gato que visitava ela todas as noites?” E eu lhe respondo: porque nunca visito minha filha, ela nunca tá em casa, nem o marido dela, os filhos no colégio, nas aulas de inglês, francês, na natação, não sei mais o quê. Quem cuidava do Gaspar, assim como dos meus netos, era Jacinta, a empregada de minha filha.

— Quando a senhora descobriu?

— Quando minha neta completou quinze anos. Fizeram uma festança lá, aí me convidaram. Fui a uma cabeleireira aqui perto, fiz penteado, maquiagem, botei perfume e fui toda deslumbrante, vestido longo, pra festa de quinze anos da Fernanda. Usei até uma joia no pescoço, um cordão de ouro branco com uma safira, que foi de minha mãe, tava guardado há anos no meu porta-joias. E no dedo um anel bonito que ganhei do meu marido quando ele viajou pro Rio, nos anos sessenta, lindo, com brilhantes. Ah, eu tava tão elegante! As pessoas, que sempre me veem do jeito que eu tô aqui, desarrumada e sem maquiagem, comentaram: “Dona Aracy, que chique, que luxo, que maravilhosa a senhora tá!” E eu, assim, o olhar por cima de todos, como o meu Gaspar, com minha bolsa de couro, presente do meu filho, parecia que flutuava, parecia Claudia Cardinale naquela cena daquele filme italiano famoso, preto e branco, sabe? Ah… A festa linda, convidados, comidas e bebidas chiques, salgados, doces e canapés de todo tipo. E eu, no meu canto, faceira, mas não olhava pra ninguém não, não dava confiança, tinha que mostrar que eu era uma soberba femme fatale — e ri, levando a mão à boca, envergonhada do deslumbre.

— Deve ter sido inesquecível. Mas como a senhora notou, quero dizer, como a senhora ficou sabendo do gato, do Gaspar?

— Bem, foi só no final da festa, eu já tinha tomado minha bebida preferida, algumas tacinhas de xerez, tava alegrinha, quando vi, todo preguiçoso, o meu Gaspar em cima de uma espécie de divã, numa salinha onde fica o piano da minha neta. Sabe, minha neta toca piano divinamente bem… olha, isso me emociona. Aquele lugar, a festa… minha neta, meu neto, os convidados, todos ali. Minha filha, meu genro, os amigos médicos, gente importante… — a velha embarga a voz, respira fundo, mas consegue prosseguir: — Vi o Gaspar, meio dormindo, cochilando. No início, fiquei sem acreditar que era ele. Olhava, olhava, e o gato, aquele gato que ainda não era, não parecia o Gaspar, porque estava num lugar estranho… o efeito do xerez, sabe?, o ruivo suspirando, deitado naquele canapé, com a cabeça sobre as patinhas cruzadas. Então, minha filha apareceu com uma taça na mão e me viu olhando fixamente pro meu Gaspar, aí me falou: “Mãe, tá sozinha aí? O que foi?” E eu, meio sem acreditar que era o Gaspar, falei: “De quem é esse gato? Onde vocês arranjaram ele?” Minha filha disse assim: “Mãe, esse gato sempre foi daqui de casa, por quê? O nome dele é Átila”. Eu disse: “Átila?”, torcendo o nariz, com um tom… assim, como se tivesse falando mal do nome que escolheram. Um nome tão feio! Me aproximei e vi que era o meu Gaspar. Alisei o pelo dele e disse: “Gaspar, como você veio parar aqui nessa festa, menino?” E cantei a canção do Gaspar, a que ele sempre gostava quando escutava: Vento que balança as palhas do coqueiro, vento que encrespa as ondas do mar… O Gaspar acordou, preguiçosamente, olhou pra mim e sorriu. Levantou-se, espreguiçando-se, fazendo seu alongamento: as patinhas da esquerda pra frente, as da direita pra trás, depois o contrário; e aquele bocejo que só ele fazia. E veio roçar a cabeça na minha mão, pedindo um cafuné, mas antes me jogou um beijo. Aquela piscadinha que eles dão quando querem mandar beijo, sabe? Minha filha disse: “Veja só… Átila, você conhece minha mãe, seu safadinho…” Mas o meu Gaspar nem aí pra Juliana, era como se ele só conversasse comigo. Eu já não tinha muito controle sobre a situação e me bateu uma vontade danada de levar o meu Gaspar pra casa. Era como se minha filha tivesse tirado um filho meu, a única coisa de valor que eu tinha. Nem aquelas joias valiam mais do que o Gaspar. Peguei o gato no colo e saí da sala de música. Minha filha me acompanhou e me perguntou aonde eu ia com o gato debaixo do braço: “Mãe, você não pode sair por aí com o Átila! Você vai cair com o gato! E essa taça na mão?! Vai se machucar, mãe!”. Eu me dirigia pra porta de saída, nem dava ouvidos à Juliana. Ela insistia, já meio nervosa, aí eu respondi que o gato não era dela, era meu, e que ele não se chamava Átila, que Átila era um nome horroroso, que ele se chamava Gaspar. Ela tentou tirar o gato do meu colo, mas o gato ficou irritado e arranhou o rosto dela. Sangrava, o arranhão foi grande. Minha filha começou a chorar e chorar, eu fiquei atordoada, sem saber o que fazer, e o Gaspar, assustado, saltou e correu pra fora, contornou a piscina e subiu o muro, sumindo entre as copas das árvores, na escuridão da noite. Minha filha começou a se descontrolar, porque percebeu que o rosto dela sangrava, e o sangue se misturava à maquiagem e às lágrimas. Ela caiu de joelhos e começou a gritar. E depois começou a urrar de raiva, como se fosse um animal selvagem. Não reconheci a Juliana mais. Eu chorava sem parar e não conseguia me mover dali. Daquele momento em diante… — embarga a voz, chora, soluça, enxuga as lágrimas e não consegue continuar o relato, as mãos trêmulas, segurando a jarrinha.

— Sente-se, Dona Aracy, sente-se, por favor — conduzo-a até a varanda, ela se senta na cadeira de balanço. Coquetel se aproxima das pernas dela. Mia. Dona Aracy diz que o gato quer consolá-la.

Peço-lhe permissão para pegar um copo d’água. Ela concorda e me indica onde fazê-lo. Trago-lhe um copo com um remédio para hipertensão, que ela também me requerera. Ela sorve a água, com alguns goles, depois de pôr o remédio na boca. Vai se acalmando aos poucos. Desculpa-se pelo ocorrido, pois não esperava — acrescenta — que fosse me chatear com suas coisas, àquela hora da noite, após eu ter relaxado depois de uma caminhada.

— De maneira nenhuma. A senhora não precisa desculpar-se.

Dona Aracy prossegue, afirmando que sua filha, enquanto se levantava do chão, depois de manter-se ajoelhada por um tempo, disse-lhe que o ocorrido demonstrava bem o porquê de ela ser uma velha soli…

— Ela não terminou a frase — diz com a voz ainda trêmula. — Ela parou no meio da palavra “soli”, não teve coragem, mas sei que queria dizer que aquilo demonstrava por que eu era uma velha solitária. Não sou tola. Disse a ela que eu era velha, sim, mas não era solitária, porque tinha meus gatos, pessoas melhores, muito melhores que os seres humanos. Ela riu, mesmo chorando, me disse que eu era uma velha louca, ao tratar gatos como pessoas. Disse que o gato era da Fernanda e que, se eu quisesse o “animal” — assim se referia ao meu Gaspar —, que pedisse a ela, minha neta. Voltei pra casa. Desde esse dia não voltei mais a ver minha filha.

— As coisas vão se acertar, Dona Aracy, sua filha vai voltar a ver a senhora. Tenho certeza.

— Já nem tenho mais esperança, meu filho. Mas, se é verdade que a esperança é a última que morre, espero que se cumpra o ditado, que seja depois de mim — tomou a água que sobrara no copo e disse que queria me mostrar uma coisa.

Pegou-me pela mão, e, com passo ligeiro, atravessamos a casa, de estilo colonial e piso revestido de mosaicos antigos. Passamos pela sala ampla, com cortinas brancas e bufantes nas janelas e com sofá e poltronas antigas, de tecidos sóbrios, gastos; depois, pela cozinha espaçosa, com eletrodomésticos ainda mais velhos, caçarolas, frigideiras e panelas enormes dependuradas em ganchos na parede, sugestivas de uma época em que a casa era frequentada por outros comensais; em seguida, cruzamos o alpendre, de base arqueada, com madeirame meio apodrecido, e logo atravessamos o caramanchão, repleto de plantas escandentes muito bem cuidadas, lágrimas-de-cristo, parreira e alamandas-amarelas e roxas, o que demonstrava o enorme apreço de Dona Aracy por plantas, chegando, poucos passos depois, ao centro do quintal, parcialmente iluminado, ocupado em sua maior parte, além do gramado, por um bonito jardim. Ao fundo, junto a um roseiral e sob a copa de uma mangueira, havia uma pequena cruz de madeira, de cores púrpura e dourada, cravada num diminuto sepulcro de pedras, no qual se podia ler com certa dificuldade a seguinte frase, inscrita com cores idênticas às da cruz, numa lápide com não mais que um metro de extensão: “Gaspar, vestido com o manto púrpura de Corinto, vindo do Oriente, trouxe incenso ao Menino Deus”. No entalhe da cruz, uma pequena medalha redonda com tampa de vidro, dentro da qual repousava a foto de um belo gato cor de tangerina.

— Que bonito, Dona Aracy, é como um santuário — disse.

— É o meu Gaspar. Aqui, ele fica mais perto de mim.

Conversamos, ainda, por uma hora. Na sala de estar bastante arejada, a vizinha me ofereceu um cálice de vinho do Porto, um ruby, o melhor que bebi em toda minha vida, depois de lhe contar que morei por um período curto na Cidade do Porto, quando fiz um curso de pós-graduação na universidade, e de quando degustei o vinho licoroso lusitano, do qual guardava boas recordações. Disse-lhe que, naquele período de um ano, cuidei de um gato vadio e enfermo, a que chamei Poirot, em homenagem ao personagem dos livros de Agatha Christie, pois o felino era um dos mais curiosos e astutos que conheci. Poirot cresceu e se transformou num enorme gato alaranjado, tendo permanecido em Vila Nova de Gaia com minha namorada dos tempos de mestrado, depois que voltei para o Brasil. Disse-lhe que, de alguma forma, tive também o meu Gaspar. Enquanto estudava nas madrugadas insones, o gato me velava, deitado ao pé da luminária, perto da qual quase sempre eu deixava um cálice com um invulgar vinho, o que só se tornara possível, nos tempos da bolsa de mestrado, com o “contrabando” de uma cúmplice, Carminho, minha namorada, que era neta de um dos proprietários da Adega Quinta dos Plátanos, de Vila Nova de Gaia, dentre as menos famosas, uma das melhores da região.

Depois de ver que a velhinha melhorara o semblante, despedi-me de Dona Aracy e, nos dias que se seguiram a esse encontro, apressei-me em comprar o enxoval que ainda faltava, pois Helena se apressara em nascer antes do tempo previsto. Lembrei-me, durante o parto, a que não tive coragem de assistir, das palavras de Dona Aracy sobre a crueza na parturição dos felinos. Depois, veio o puerpério de Eva, minha companheira, razão por que, durante algumas semanas, deixei de passar pela casa de minha vizinha, já que cessaram as caminhadas noturnas em favor do despertar madrugador e festivo de Helena.

Quando retomei à minha rotina de caminhadas, fui visitar Dona Aracy e encontrei Juliana retirando os últimos móveis da casa. Perguntei-lhe o que tinha havido com a velhinha. Disse-me que a doença de sua mãe tinha recrudescido consideravelmente nas últimas semanas, e a família tomou a dura decisão de colocá-la num Lar de Repouso. Foram esses os termos usados pela filha, ao referir-se à clínica a que a idosa fora levada. Perguntei-lhe se era possível visitá-la e como poderia fazê-lo. Deu-me o endereço de uma clínica geriátrica no Bairro Dionísio Torres, numa alameda próxima ao Parque do Cocó. Liguei com antecedência e avisei à enfermeira-chefe que visitaria Dona Aracy no sábado à tarde.

Encontrei-a, num fim de tarde, sorridente e bastante afável: o coque bem-feito, de fios acobreados, as bochechas rosadas, os lábios carmesins, mostrando os dentes bem cuidados, e a pele, conquanto flácida, com as rugas naturais da idade, muito bem cuidada; tudo em Dona Aracy transparecia em asseio e dignidade. Tranquila, demonstrava muita felicidade ao me ver, mas ressaltava que a visita era bastante rápida, o que lhe desgostava, já que não podia aproveitar muito minha presença. Perguntei-lhe sobre os gatos. Disse-me que, logo que se recuperasse, talvez uma semana mais, teria permissão para visitar sua casa todas as noites, de modo que pudesse permanecer por um par de horas com seus visitantes noturnos, para dar-lhes de comer e de beber, retornando logo depois, por volta das oito da noite, à clínica, o que seria providenciado por sua filha, segundo acreditava. Pelo que pude compreender, ainda ignorava que Juliana tivesse retirado os móveis da casa, o que lhe permitia conjecturar sobre como tornaria possível a estada em seu ambiente familiar, a limpeza que faria nos cômodos, como conduziria a compra da ração, o asseio das vasilhas, como alimentaria e dessedentaria os felinos etc. Garantiu-me que o roseiral e as plantas do caramanchão e do jardim estavam sendo muito bem cuidados pelo jardineiro que sua filha contratara, que cumpria também a função que a anciã se incumbira nos últimos anos. Mas, enquanto esse dia não chegava, o de retornar parcialmente à sua rotina, com a companhia de seus hóspedes noturnos, pedia-me um obséquio.

Disse-lhe que faria o favor, se fosse, para mim, algo possível de cumprir.

— Fácil, muito fácil. Você tira de letra — disse-me Dona Aracy, cuja maquiagem a tornava ainda mais simpática e acentuava sua faceirice. — Você tem que comprar uma cajuína, é vendida perto de sua casa, ali no Mercado Joaquim Távora, tem que esvaziar a garrafa, ir até minha casa, encher de xerez, tampar com muita vedação e trazer ela pra mim, como se fosse cajuína. Ora, mais fácil do que isso, impossível. Se você concordar, posso contar meu segredo.

— Mas, Dona Aracy, será que não vão notar que a senhora tá tentando trazer bebida alcoólica, sem permissão, pra dentro da clínica?

— Mas isso aqui não pode se transformar numa prisão, meu filho. Nem num manicômio. Eu não tô presa, não cometi crime nenhum, nem tô louca. Ainda não — acrescenta, libertando uma risada gostosa.

— Tá bom, tá bom, então faço sim o que a senhora tá me pedindo. Mas a senhora tem que ter muito cuidado, tem que me prometer que vai beber pouco e só quando for possível, certo? Quando estiver sozinha, sem enfermeiros por perto. E queria dizer uma coisa à senhora: aquele cálice de vinho do Porto, que a senhora me ofereceu no dia do nosso último encontro, foi o melhor de toda minha vida.

É, ele é muito bom, muito bom — abre um sorriso largo. — É herança do meu velho, que será sua também, meu filho. Vinho muito antigo, guardado num lugar fresco — concordou, enquanto eu, por dentro, ria da engenhosidade e da astúcia da velhinha.

— Mas qual é o segredo que a senhora queria me contar?

Levanta-se da poltrona, em que se encontrava até então recostada, vai até uma pequena escrivaninha, tira uma folha de papel da gaveta, que parece ser um rascunho, e me surpreende:

— Tô escrevendo um livro sobre o Gaspar.

— Que maravilha, Dona Aracy! E o que temos aí?

— Olha, meu filho, escrevi já faz algum tempo, logo que perdi meu Gaspar, depois que eu andei lendo algumas coisas.

E lê para mim com uma voz segura e calma:

— Contam que Deus criou o gato para conceder aos homens o prazer de acariciar um tigre. Eu penso um pouco diferente sobre o meu Gaspar, que dorme profundamente no quintal de minha casa, em meio a um lindo roseiral e sob uma cruz de ouro e púrpura. Deus criou Gaspar não só para que pudéssemos acariciá-lo, mas também para que resgatássemos a humanidade que perdemos em razão da indiferença e do abandono, que ainda nos acometem como doenças mortíferas, pois, se conseguirmos conhecer profundamente, na intimidade, os gatos (que são os tigres que comem na mão, como diz um antigo provérbio japonês), tal qual conheci Gaspar em sua altivez e sensibilidade, e se soubermos dar a eles e deles receber todo o carinho, não aceitaremos jamais nenhum delito contra os animais, da mesma forma que não devemos aceitar nenhum crime contra a humanidade. Gatos não são como pessoas; são pessoas de verdade. A pequena obra-prima de Deus, como escreveu Leonardo da Vinci.

Ponho a mão sobre a mão de Dona Aracy e dou-lhe um beijo na testa.

— Que lindo, Dona Aracy.

Ela sorri, suas mãos procuram as minhas, seguram-nas firme. Ela olha nos meus olhos e diz:

— Que bom você ter vindo de tão longe pra me ver, meu filho.

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Conto

A viagem de Juan Ponce

Por Jessé Alexandria

“- Algum viajante – lembrou o poeta Abdalmalik – fala sobre uma árvore cujo fruto são pássaros verdes.”

(A busca de Averróis, de Jorge Luís Borges)

Era o equinócio de outono do ano de 1521 de Nosso Senhor. Propositadamente, desviei-me do caminho de Santiago de Compostela e rumei mais ao norte, em busca do Douro castelhano e de suas belas paragens, de suas lagoas e fontes escuras e dos olmos centenários de sua mata ciliar. Santiago de Compostela me esperaria até o inverno.

O vento, que me dera trégua nos momentos mais difíceis da escalada do monte Urbião, fustigava-me novamente as faces já rubras de frio. O corpo cansado reclamava um quarto aquecido, um cobertor e um bom vinho, para retirar-me de vez as derradeiras forças e dar-me de beber um sono profundo. Caminhava a longo passo de Sória, e, nessas veredas montanhosas, o vento cortante do outono obriga os viajantes a procurar pouso antes do cair da noite.

A montante do velho Douro, um maciço íngreme avançava ao norte e, algumas milhas depois de Covaleda, regatos ruidosos emulavam com rouxinóis que se agasalhavam em robustos choupos, nos quais as folhas precocemente caducas, amarelecidas, ainda resistiam ao vento.

O caminho de Vinuesa, em direção ao norte, se apresentara extremamente perigoso, repleto de assassinos e salteadores, de sorte que busquei as sendas a noroeste da serra, onde Duruelo assomaria mais segura, protegida por São Miguel Arcanjo. Ainda rio acima, uma alameda e alguns salgueiros e cerejeiras se empertigavam entre as rochas escarpadas, quase retilíneas, uma das quais, de cujo cimo e sobre cujo rosto despencava uma densa cascata, de tão alinhada, parecia que fora esculpida pelo cinzel de algum deus pagão. Andorinhas, em revoada, iniciavam sua longa marcha para o sul.

Vencera as sendas tortuosas até Duruelo e, naquele sítio conhecido pelas famosas rochas de Castroviejo, onde vira uma imensa pedra calcária em forma de punho, ou de coração, o sinal de que rumava no caminho certo até a Serra do Urbião, rezei na Igreja de São Miguel Arcanjo, contemplando o Santo Cristo das Maravilhas, pedindo-lhe bênção e proteção. De nave única e abside em arco, com a abóbada sobre capitéis pingentes, em oito partes dividida e na qual oito pequenos óculos de tamanhos irregulares circundam o maior deles no centro da cúpula, todos encravados numa grande estrela-do-mar, através dos quais uma luz filtrada apazigua os ânimos de qualquer cristão que lhe cruze o transepto, a Igreja ergue-se sobre uma pequena colina de pedras roliças, embaixo das quais se diz existir uma antiga necrópole.

Adiante, seguindo a rota do Douro, conduzido pelos regatos que desciam a montanha, pude vislumbrar uma floresta de pinheiros silvestres, que se perdia na amplidão dos penhascos, e

apreciar as águas de uma cascata que descia voluptuosamente à entrada da chamada Cova Serena, enorme fenda na rocha que se assemelha a uma bocarra entreaberta.

Caminhei durante horas, quando, exausto, parei às margens de um regato. Descansei alguns minutos, molhei o rosto com a água gélida que descia mansamente por entre as rochas e deixei na boca, por um instante, para que fosse aquecida antes de engolir, uma porção do líquido que já fora gelo de um dos glaciares da montanha, em torno dos quais, como ciclopes, cumes pontiagudos guardam as fontes sagradas do Urbião, mas não sem me dar conta de que teria de prosseguir a escalada, até o topo do monte.

A noite se precipitava, e já me preocupava o fato de não recordar a localização exata de uma estalagem nas proximidades. Havia muito tempo, estivera nas fontes do Douro, no cimo do monte Urbião, todavia me custava recordar precisamente em que hospedaria repousara. Apressei-me, seguindo o caminho do monte e ladeando o Douro e seus arroios. Uma hora depois, em meio a um pequeno bosque de faias, perto das penhas brancas do monte, deparei com uma estalagem à entrada de uma floresta de pinheiros, situada num altiplano.

Bati fortemente à porta da velha construção de pedra, auxiliado pelo peso da espessa aldraba. Na fachada, esculpido na rocha, havia o ano de sua fundação e pequenos entalhes numa madeira encravada no frontão, desgastada pelo tempo. Em meu socorro, veio de dentro da estalagem uma blasfêmia tipicamente castelhana, seguida de passos lentos e do ranger metálico de um pesado molho de chaves. Pouco depois, ao roçar de uma trava, seguiu-se um forte estalo.

A porta abriu-se, e atendeu-me um velho muito gordo, cabeça enorme e calva, que, de chofre, sem nenhuma mesura, me perguntou o que me levava àquelas paragens num frio crepúsculo outonal. Antes de dar-lhe qualquer explicação, pedi-lhe que me cedesse um lugar qualquer para repousar apenas por uma noite, pois continuaria meu percurso no dia seguinte, aos primeiros raios da aurora. Acrescentei, com a firmeza que a necessidade exige dos espíritos nobres, que não tinha nem ouro nem prata, nem qualquer dádiva que lhe pudesse oferecer, a não ser minha gratidão cristã e alguns momentos prazerosos que minha arte lhe poderia proporcionar naquela fria noite de outono, que se avizinhava. O velho deu de ombros, rosnou algo incompreensível e me disse que, naquele sítio distante do Reino de Castela, os andarilhos não eram sua melhor companhia, seja porque nada de valor lhe podiam oferecer, seja porque, quando seguiam viagem, nunca carregavam consigo a mesma quantidade de pulgas com que haviam chegado. Afirmou, ainda, que os nobres que costumam praticar a caça ao javali naqueles bosques sorianos, no sopé do Urbião, presenteavam-no com algumas moedas de ouro (“rex et regina castile”, enfatizou), a melhor gratidão que se podia oferecer a quem lhes dava repouso, comida e bebida. Quanto às prendas com que os viajantes costumavam perturbar-lhe o sossego, o estalajadeiro opôs que eram como os tributos reais: só agradavam aos espíritos ociosos, porque lhes compravam a preguiça.

– Ócio e negócio são bem diferentes nesses lugares remotos, andarilho – ressaltou.

– Mas esses caçadores, meu senhor, também lhe deixam as pulgas de seus lebréus, e estes levam as deixadas pelos viajantes – zombei do azedume do velho.

O estalajadeiro me perguntou, mal acabara eu de pronunciar a última palavra e sem considerar o que lhe havia dito, o que eu levava nos dois surrões velhos.

– Minha música, senhor: flauta, viola, alaúde e rabeca – disse-lhe com indistinto orgulho.

– Que tipo de jogral vossa mercê é: goliardo, histrião? Por que se desgarrou da farândola? – indagou. – Bem provável que vossa mercê siga um grupo de pedintes maltrapilhos.

Objetei que era um trovador, chamava-me Juan Ponce, que tocara na Corte de Isabel de Castela e que herdara de meus antepassados o gosto pela arte da música, um dos quais se havia apresentado nos salões de Afonso X, o sábio, de Castela e Leão.

– Como vossa mercê bem observa, ando sozinho pelos caminhos cristãos, antes romanos, destas montanhas sorianas.

O velho riu, mostrando os dentes enegrecidos:

– E além de tudo fabulista! Trovadores da Corte não caminham por estas terras, vestindo andrajos e carregando dois surrões puídos, andarilho – rebateu.

Nada respondi; tirei do bisaco a viola, apoiei-a e, ao dedilhar suave as cordas, cantei os versos de “Longe se ponha o sol”:

Longe se ponha o sol

Onde eu tenha o amor.

Lá, o ocaso chegasse

De meus amores viesse

Antes que eu morresse

Com toda esta dor.

Longe se ponha o sol

Onde eu tenha o amor.

Lá, o sol desvanecesse

e o meu amor encontrasse

antes que findasse

Com este rancor.1 2

O velho ficou algum tempo em silêncio, lábios entreabertos e olhos pasmados. Como nada dissesse, perguntei-lhe se conhecia aqueles versos de minha autoria.

– Reconheço um trovador pela virtuosidade com que executa a música, senhor. Peço

desculpas a vossa mercê. É que seus trajes não revelam a condição de quem fora nobre na Corte de Castela e Leão. Chamo-me Gonçalo de Domas. Tenho um quarto que pode abrigá-lo. Não é grande coisa, mas tem água quente e uma cama com um bom cobertor. Posso oferecer-lhe um prato de sopa, um bom vinho e pão terno – respondeu o velho pousadeiro.

Agradeci-lhe a hospitalidade e disse-lhe que, depois da refeição, poderia mostrar-lhe algumas peças musicais que havia colhido nas viagens a Córdova e Granada. Pedi ao estalajadeiro que me acompanhasse na refeição, mas Gonçalo de Domas meneou a cabeça e disse-me que poderia acompanhar-me num brinde. Assenti prontamente, afirmando que teria gosto em tê-lo como conviva.

– Acompanho-o somente no vinho – objetou o estalajadeiro -, pois minha idade não me permite, depois que o sol se põe, o mesmo que motiva seus versos, nada mais que o jejum – mas logo abriu um largo e hospitaleiro sorriso, declamando versos que me eram familiares, como se quisesse testar-me:

– Ave, color vini clari, ave, sapor sine pari, tua nos inebriari, digneris potentia.3 4

Declamei os versos seguintes, para a surpresa do pousadeiro, e o fiz lisonjeado pela evocação tão apropriada de meu poema mais dionisíaco, que escrevi inspirado pela emoção de ler pela primeira vez o Rubaiyat, do hedonista persa Omar Khayyam, cujo manuscrito fora trazido da longínqua Constantinopla, nomeada Bizâncio pelos antigos, por um misterioso viajante de Málaga, de origem siciliana, a quem chamavam Picazo ou Picasso, ou talvez ainda Picanzo, versos cuja tradução coube a meu mestre, o também siciliano Lucio Marineo Siculo.

Brindei à saúde de Gonçalo de Domas na noite outonal, aquecida pelo vinho proveniente da boa cepa de Valduero, de modo que o estalajadeiro elevou sua caneca à altura dos olhos, com a mesma intensidade com que tinha negado a acolhida momentos antes. O vinho valduriense não só nos inebriaria, senão também nos conciliaria, a nós, dois estranhos, provavelmente rivais em outra época de menos paz, nos confins das terras sagradas de Castela.

Perguntou-me, ainda, o pousadeiro, em tom mais gracioso, se não era eu a própria personificação de Dionísio, que, disfarçado de trovador andrajoso, testava-lhe a hospitalidade. Disse-me, ainda sorrindo, que mudara de opinião sobre mim exatamente por isso, como que a pressagiar que, de seus velhos cântaros de terracota catalã, provenientes da balear Eivissa (Lebessos para os fenícios, Lebisah para os árabes), na Minorca (ilha que Tito Lívio batizara e que estivera sob domínio fenício na Antiguidade, antes da predominância romana), vaso em que guardava algum vinho ordinário das terras férteis da ribeira do Douro, pudesse brotar, regalo dionisíaco, o indescritível e

sublime néctar de Falerno. Deixei que o velho ranzinza se iludisse com essa fantasia, ou que me tentasse iludir, trazida à memória pela libação que nos aquecia e nos irmanava.

– Vinho e amizade aquecem o coração – disse-lhe.

O velho pousadeiro, enquanto eu saciava a fome e a sede andarilhas, deixou-me por um instante e foi preparar o quarto que me acolheria.

Depois da refeição, recuperei minhas forças, sentindo-me cômodo e reconfortado pela bebida. Seguia-me a rabeca, quando cantei para o pousadeiro os versos de uma cantiga de Santa Maria:

Dizei, ó trovadores,

Ao senhor dos senhores,

Por que não louvais?

Se vós trovar sabeis,

Se a Deus haveis,

Por que não louvais?

Ao senhor que dá a vida,

Que esperamos comprida,

Por que não louvais?

Ao que nunca nos mente,

Ao que a nossa dor sente,

Por que não louvais?

A que é mais que boa,

Aquela a que Deus perdoa,

Por que não louvais?

Ao que nos conforte,

Na vida e na morte,

Por que não louvais?

Ao que faz o que morre

Viver, nos socorre,

Por que não louvais?5 6

Conversávamos e bebíamos o bom vinho duriense. O estalajadeiro falava-me sobre como havia chegado àquele lugar. Contendas familiares e a proximidade a um irmão do Conde de Medinaceli, de quem este se tornara rival, fizeram com que Gonçalo de Domas tivesse sido expulso

de suas terras e houvesse sido obrigado a pagar pesados tributos ao Rei Enrique IV, então soberano de Castela e Leão, o que consumira quase toda sua herança e haveres. Tais divergências entre os nobres de Castela e Leão chegaram ao seu ponto crítico nas Cortes de Ocanha, em 1469, precedidas por um breve conflito armado. Gonçalo de Domas perdera quase tudo, provavelmente acusado de conspiração. Com muita dificuldade, adquirira aquelas terras de um barão arruinado, mas estava proibido, por decreto real, de plantar e possuir rebanhos, principalmente os merinos oriundos das terras lusitanas.

– Vossa mercê não tem ascendência damascena, bem se vê, ou a cor de sua pele me ilude? Ou já esteve em Damasco, a milenar Cidade do Jasmin, como denota seu sobrenome Domas? – indaguei-lhe.

– Não, nunca estive, senhor. Em verdade, provenho de Berceo, cidade onde um antepassado meu, cujo nome por mim foi herdado, fez fama e fortuna, versificando e escrevendo sobre a vida dos santos. Tenho origem basca, algo inescondível como a tosse e o amor, mas, desde tempos imemoriais, minha família vem de berço cristão. O hagiógrafo Gonçalo de Berceo, que exerceu seu monastério em San Millán de la Cogolla, escreveu versos imorredouros, alexandrinos perfeitos, sobre os milagres de Santa Maria.

– Vossa mercê sabe algum de coro? – perguntei-lhe.

– Claro que sim, nobre trovador.

– Pois bem, rogo-lhe que os declame, enquanto dedilho as cordas da viola – disse ao pousadeiro.

Gonçalo de Domas, bebendo um demorado gole de vinho, que lhe tornou a voz mais suave, declamou, de seu antepassado hagiógrafo, os Milagres de Nossa Senhora. E, por mais de um par de horas, cantamos e brindamos à honra do mui santo monge navarro.

Gonçalo declamou os versos da Cantiga de Santa Maria na qual a Virgem, na cidade de Saidnaya, terras sírias, próxima a Damasco, fez uma de suas últimas aparições de que se tem notícia7 8.

Foi então que o velho basco me disse:

– Talvez daí venha meu raro sobrenome, nada revelador de minha origem navarra, senão de um certo apreço de meu antepassado hagiógrafo pelo milagre de Santa Maria ocorrido em Damasco. Caro trovador, sei que a noite já quase enlaça mãos com a madrugada, mas este humilde pousadeiro queria escutar, se vossa mercê me conceder mais uma dádiva de sua nobre arte, um romance sobre a reconquista de Granada, pois, tendo cantado e tocado na Casa de Isabel, a católica, o nobre menestrel saberia cantá-lo como ninguém.

Com o alaúde, cantei os versos de Juan del Enzina:

Ó Granada enobrecida, por todo mundo aclamada,

Até aqui foste cativa, e agora já libertada!

Perdeu-te o rei D. Rodrigo, por dita desditosa.

Ganhou-te o rei D. Fernando com ventura prosperada.

A rainha Dona Isabel, a mais temida e amada,

Ela com suas orações, e ele com muita gente armada.

Segundo Deus faz seus feitos, a defesa era escusada,

Pois, onde Ele põe Sua mão, o impossível é quase nada!

Que é de ti, desconsolado?

Que é de ti, rei de Granada?

Que será de tua terra e teus mouros?

Onde tens tua morada?

Renega já a Maomé e sua seita malvada,

Pois viver em tal loucura é burla malograda.

Torna, torna, bom rei, à nossa lei consagrada.

Porque se perdeste o reino, terás tua alma cobrada.

Que é de ti, desconsolado?

Que é de ti, rei de Granada?

De tais reis, vencido, honra deve ser-te dada.9 10

Não se conteve o velho basco e louvou a interpretação daqueles versos. Agradeci-lhe comovidamente. Contava-me como Granada fora conquistada e como o grande Boabdil fugira de Alhambra. Falava sobre as intrigas palacianas, de que se aproveitaram os reis e a nobreza católicos para preparar, durante dez anos, a tomada de Granada dos nasridas. Gonçalo de Domas demonstrava que conhecia bem as escaramuças da Corte e a urdidura da Reconquista. O vinho o deixara sem qualquer inibição, o que lhe permitia narrar sua vida na Corte sem nenhum pejo, malgrado lhe custasse manter-se calmo quando falava dos nobres de Burgos e Leão e quando mencionava a fraqueza política do Rei Enrique IV, o Impotente, que cedeu à sanha de poder dos leoneses Juan de Villamizar e Gonçalo de Villafañe e dos burgueses Antonio Sarmiento e Iñigo Díaz de Arceo. Mas nenhuma amargura do velho basco tinha relevância perto do que nutria pelo então Conde de Medinaceli, que o arruinara e que, dez anos após as Cortes de Ocanha, teria de Isabel, a católica, o título de Duque de

Medinaceli, o qual Gonçalo de Domas dizia desprezar e não reconhecer. Então, para apaziguar o coração do estalajadeiro, cantei, ao som do alaúde, evocando o fim do reinado mouro nas terras da velha Hispânia, o Romance da Perda de Alhama:

Passeava o Rei Mouro pela cidade de Granada,

Da Porta de Elvira até a de Vivarambla.

– Ai de mim, Alhama!

Cartas lhe foram vindas, que Alhambra era tomada.

As cartas, jogou ao fogo e ao mensageiro matara.

– Ai de mim, Alhama!

Descavalga de uma mula e num cavalo cavalga;

pelo Zacatín acima, subindo se foi a Alhambra.

– Ai de mim, Alhama!

Como em Alhambra esteve, ali mesmo mandara

que se tocassem as trombetas, seus anafis de prata.

– Ai de mim, Alhama!

E que as caixas de guerra depressa tocassem o alarma,

Para que o ouvissem seus mouros, os de Vega e Granada.

– Ai de mim, Alhama!

Os mouros que o som ouviram, que ao sangrento Marte chamara,

Um a um e dois a dois, se juntaram à grande batalha.

– Ai de mim, Alhama!

Ali falou um mouro velho, dessa maneira falara:

– Para que nos chamas, Rei? Para que é esta chamada?

– Ai de mim, Alhama!

– Haveis de saber, amigos, uma dita malfadada,

que cristãos de bravura já nos hão tomado Alhama.

– Ai de mim, Alhama!

Ali falou um faquir, de barba crescida e branca:

– Bem se te emprega, Rei. Bom Rei, bem se te empregara.

– Ai de mim, Alhama!

– Mataste os abencerrages, que eram a flor de Granada,

levaste os tornadiços de Córdova, a renomada.

– Ai de mim, Alhama!

– Por isso, mereces, Rei, uma pena mui dobrada:

Que percas o teu reino e aqui se perca Granada.

– Ai de mim, Alhama!11 12

Voltei à viola com versos mais amenos à ocasião, anteriores à Reconquista, nos quais Granada aparece como uma mulher a quem o Rei D. Juan pede em casamento, romance que evoca a figura lendária do poeta mouro Abenámar, de nome nobre Abu Bakr Muhammad Ibn Ammar, amante do Rei-Poeta Al-Mutâmide:

Abenámar, Abenámar, mouro da mouraria,

O dia em que nasceste, grandes sinais havia,

Estava o mar em calma, a lua estava crescida,

Mouro que em tal signo nasce não deve dizer mentira.

Ali respondera o mouro, bem ouvireis o que dizia:

Direi verdade, senhor, ainda que me custe a vida,

Porque sou filho de mouro e de uma cristã cativa;

Sendo eu menino e rapaz, minha mãe me dizia

Que mentira não dissesse, que era grande vilania;

Portanto, pergunte, Rei, que a verdade lhe diria.

Te agradeço, Abenámar, essa tua cortesia.

Que castelos são aqueles? Altos são e reluziam!

O Alhambra era, senhor. E o outro, a Mesquita,

Os outros, os Alixares, lavrados à maravilha.

O mouro que os lavrava, cem dobras ganhava ao dia.

No dia em que não os lavrava, outras tantas ele perdia.

O outro, o Generalife, horta que par não teria.

O outro, Torres Bermejas, castelo de grande valia.

Ali falou o Rei D. Juan, bem ouvireis o que dizia:

Se tu quisesses, Granada, contigo me casaria;

Te darei, em arras e dote, as lindas Córdova e Sevilha.

Casada sou, rei D. Juan, jamais me entregaria,

O mouro que me tem a mim, mui grande bem me queria.13 14

Gonçalo de Domas, conferindo um tom mais solene à voz, cada vez mais frouxa e abrandada pelo vinho, iniciou o que chamou “uma história interessante”, contada pela primeira vez em sua família por seu ancestral hagiógrafo:

– Um viajante que descansou nessas paragens, há, pelo menos, três centúrias, contou ao grande Gonçalo de Berceo que um rei insano, odiado por seu povo, matara a um pastor, por ser este muito querido em sua aldeia. O rei, enciumado, mandara cortar a cabeça do aldeão e enviara o filho deste a um mosteiro. O menino cresceu e voltou à vila, onde, já homem-feito, passou a viver tocando flauta e viola. Havia aprendido a arte da música com os monges que o educaram. A filha do rei apaixonou-se pelo jovem (ela também amava muito a música, que os aproximara), o que despertou a fúria do monarca. O rei prendeu o trovador numa fortaleza, da qual jamais alguém escapara. A filha do rei morreu de coração partido, semelhante ao que ocorrera aos Amantes de Teruel, Juan Martínez de Marcilla e Isabel de Segura, pois o monarca jamais permitiu que a princesa tornasse a ver o trovador. Por haver perdido a única filha, a joia que mais amava, o rei decidiu que o prisioneiro não seria executado, mas dele seria tomado o que lhe era mais valioso. Ao dar liberdade a um companheiro de prisão do trovador, o rei comprou-lhe um segredo: “É a música, Majestade, aquilo que restou ao trovador, aquilo que ele mais ama!”

O estalajadeiro prosseguiu, depois de um longo trago de vinho:

– O rei mandou que os festejos do reino fossem deslocados para o palácio mais distante. Nas aldeias, a música foi proibida. E não havia dor maior para o menestrel. Os aldeões que assobiavam ou cantarolavam eram presos e cumpriam penas cruéis. A música só era executada num distante palácio, nos confins do reino, presenciada apenas pela família real e por suseranos e vassalos. Mesmo segregado, o trovador ainda versejava, ainda perseguia algo que lhe restituísse a vontade de viver. Soube o rei que o trovador se alegrava, unicamente, com as aves canoras que se acercavam das grades da pequena janela do cárcere e assobiava para elas, às quais regalava migalhas de pão. O rei mandou construir uma enorme rede em volta da torre na qual mantinha menestrel encarcerado. Os pássaros se afastaram ou foram capturados e mortos. Mesmo assim, o trovador ainda encontrava alguma pequena alegria, cantando, pois o rei ainda não lhe havia arrancado, completamente, a música. Um dos carcereiros disse ao rei que havia visto o trovador a cantar e tocar uma viola imaginária. O rei mandou fechar a janela da torre com pedras, ordenou que cortassem a língua do trovador e lhe furassem os tímpanos. Sem poder cantar nem ouvir bem, só lhe restaria o silêncio da morte.

Determinou, também, que ninguém poderia jamais cantar naquele reino, enquanto o prisioneiro estivesse vivo, sob pena de morte na forca ou em garrote vil. Decretou guerra aos pássaros do reino e reuniu um pequeno exército para exterminá-los. “Vivemos no Reino do Silêncio!”, diziam os aldeões.

Gonçalo de Domas, elevando o cântaro acima de minha caneca, despejou nela o vinho navarro, que, vibrante e violáceo, descia espumoso como os regatos que despencavam do alto do Urbião, e continuou sua narrativa:

– Tempos depois, outro carcereiro disse, com certa compaixão, que, no silêncio da noite, o coração do trovador batia tão forte, que se assemelhava a um tambor, a marcar a passagem do tempo com pancadas sonoras e ritmadas. O rei não teve dúvida: ordenou que lhe arrancassem o coração e o jogassem às feras. Assim fez o carrasco, apesar de entender que o que executava era uma injustiça: levou o prisioneiro para o lugar mais distante do reino e lhe arrancou o coração. Porém, o coração continuou a bater, forte e compassadamente, com as mesmas pancadas sonoras e ritmadas de antes. O verdugo, mesmo assombrado, levou o coração para ser atirado às feras. Nesse instante, lhe apareceu um pássaro canoro, que lhe falou: “Não atires o coração às feras! Não vês? Ele pulsa, está vivo!” Espantado, o algoz, as mãos trêmulas, lhe respondeu: “Jamais quis atirá-lo às feras. Nem mesmo quis matar o trovador. Fui obrigado por meu senhor a fazê-lo”. O pássaro pediu que escutasse atentamente algo que lhe deveria contar: “O coração que tens nas mãos deverá ser deixado no caule do mais antigo carvalho, na mais alta montanha do reino. A cada sopro do alísio, ressoará das entranhas do coração as primeiras melodias do homem, inundando de música todo o reino. Vejo remorso em teu coração. Estou certo de que teu arrependimento é sincero, mas terás de peregrinar pelo mundo, durante toda tua vida, aprendendo e ensinado tudo que puderes da Arte da Música. Não terás nem pátria, nem posses, mas apenas teus instrumentos musicais, nos quais se transformarão todos os instrumentos de tortura, suplício e morte que antes utilizavas. Apressa-te! Mas antes quero contar-te algo que jamais contei a alguém. Quando o criador fez o primeiro homem, esculpiu-o com a argila das margens do Rio da Criação. Moldou-lhe o corpo como o seu próprio corpo. Mas aquela figura inanimada necessitava de um sopro de vida para caminhar sobre a Terra. E o criador soprou na concavidade do punho semicerrado de sua mão esquerda, produzindo um som melodioso, jamais ouvido. Fechou totalmente a mão e aprisionou o sopro de ar no peito da criatura de argila. Depois, abriu e fechou a mão algumas vezes, como o bater de asas de um pássaro, e a afastou daquele corpo ainda sem vida, instante em que um pequeno tambor passou a bater compassadamente no peito da criatura. O criador deu-lhe o nome de Homem, porque nascido do húmus, da terra fértil; a Música, sua alma, ressoaria no coração durante toda a vida. Quando, um dia, o coração parasse, a alma deixaria o corpo e se aninharia no tronco desse carvalho primevo, à espera de outro sopro divino”. O pássaro, antes de alçar voo, disse-lhe ainda: “Vai, o tempo urge. Após a aurora, este reino não mais poderá estar imerso no silêncio. Apressa-te!”

E Gonçalo de Domas continuou, tomando mais uma caneca de vinho, que sorvia com mais ímpeto, enquanto contava a história lendária, não sem notar minha incredulidade estampada no rosto, ante uma fábula a cujo enredo parecia impor distorções, com intuito de aproximá-la de outras já conhecidas:

– O carrasco deixou o coração no lugar indicado, que se incorporou ao velho carvalho. A música invadiu o reino: rompeu-se o silêncio. À sombra da árvore repousavam uma rabeca, uma flauta e uma viola. O verdugo colocou-as em sua sacola e retirou-se, peregrinando de reino em reino, de aldeia em aldeia, de caminho em caminho, pelo resto da vida. Em seus últimos anos, vida que lhe foi muito longa, tocou seus instrumentos no califado da Córdova de Al-Andalus, inclusive para o próprio califa almóada Abu Yaqub Yússuf, que, em gratidão, lhe presenteou um alaúde. Um dos calígrafos do monarca muçulmano escreveu essa história, ditada provavelmente por Averróis e perdida para sempre. Algumas músicas tocadas pelo menestrel chegaram até os nossos dias pelas cantigas recolhidas por Afonso X, o sábio, de Castela e Leão, como a cantiga de Santa Maria que reverencia o perdão.

E cantei com ele a cantiga evocada, o alaúde como companhia:

Se um homem fizer de grado pela Virgem algum bem

Demonstrar haverá ela sinais de que lhe prazem

Disso vos direi milagre, onde houverdes sabor

Que mostrou Santa Maria com mercê e com amor

A um mui bom cavaleiro, seu querido servidor

Que em servi-la pusera seu coração e seu bem

Se um homem fizer de grado pela Virgem algum bem…

E havia um seu filho a quem sabia mais amar

Assim, matou-o um cavaleiro. E com pesar

Do filho, foi ele prendê-lo e quisera-o matar

Que um ao seu filho matara, por não lhe valer vintém

Se um homem fizer de grado pela Virgem algum bem…

E ele, ao levá-lo preso, numa igreja entrou

E logo entrou o preso e do rival não se lembrou

E, após ver da Virgem a imagem, o cavaleiro o soltou

Curvou-se ante a imagem e deu-lhe graças. Amém…

Se um homem fizer de grado pela Virgem algum bem…”15 16

O pousadeiro contou, ainda, que o rei Afonso, o sábio, ainda jovem, conheceu-o pessoalmente, quando o menestrel cantava na Corte e nas aldeias de seu povo, já no fim da vida. Uma das cantigas inspirou o rei a dedicar a vida a recolhê-las. Narrava a história de uma estalagem em que havia a imagem de Santa Maria numa távola, que, milagrosamente, se materializava na santa, o que ocorreu não só uma, mas inúmeras vezes. O rei perguntou ao menestrel onde havia ocorrido o milagre. O trovador disse não conhecer a pousada, justo porque nunca a estalajadeira se gabara das aparições. Talvez por essa razão, a história foi difundida por viajantes, sem que nunca mencionassem o lugar da revelação. De fato, ignoravam-no. Até podiam tê-lo inventado, o tal lugar, mas nunca o fizeram. O rei vestiu-se de viajante e foi procurar a estalagem em seu reino e em outros vizinhos. Numa noite de céu claro, encontrou, na subida de um monte, uma pousada. Muito cansado, bateu à porta. Uma velha o acolheu, deu-lhe um quarto, um prato de sopa, alguns pedaços de pão e uma caneca de vinho. O rei agradeceu-lhe a hospitalidade e lhe indagou se conhecia a estalagem em que havia, numa távola, a imagem de Nossa Senhora. A velha respondeu-lhe que ali, naquela estalagem, havia a távola a que o rei se referia. O rei pediu-lhe permissão para ver a imagem. Num quarto muito escuro, cerrado por uma porta larga, havia uma mesa de tampo de carvalho enegrecido. A velha acendeu um lampião. Ali, bem no centro da mesa, uma imagem de Santa Maria emergia dos nós cortados do caule do roble. O rei ficou muito impressionado, ajoelhou-se e rezou. Pediu que Nossa Senhora lhe concedesse a graça da aparição. A velha contemplava-o com placidez. O rei Afonso chorou, curvou-se durante horas ante a imagem de Santa Maria, mas esta não se revelou. O sábio monarca, resignado, tomou o caminho de volta para o seu reino e passou o resto da vida colhendo as cantigas em homenagem a Santa Maria.

Gonçalo de Domas acrescentou, com secura na voz e pigarreando (mais de um cântaro de vinho já se lhe tinha ido pela garganta), que reis não podem ser santos e que estes só aparecem às pessoas comuns, aos pastores e pastoras, aos aldeões e aldeãs, aos pescadores, aos homens e mulheres pobres.

Incrédulo, contestei:

– Impossível! Mas é, praticamente, a mesma história da Cantiga de Santa Maria colhida pelo próprio rei Afonso, apreciada pelo monge Gonçalo de Berceo, da qual, como vossa mercê mesmo acentuou, provavelmente se origina seu apelido incomum. Como é possível?

– Retire dessa história suas próprias conclusões, trovador – disse o pousadeiro, sorrindo

em sua visível ebriez.

Era tarde, o cansaço já me invadia o corpo. A sensação de conforto transformava-se em sono. Desculpei-me com o pousadeiro, iria recolher-me. Antes, assenti em que sua história era mesmo muito interessante, que iria guardá-la com carinho na memória e que me serviria de inspiração por esses infindáveis caminhos solitários de Castela. Agradeci-lhe a hospitalidade, e, antes que eu me retirasse ao aposento que me havia reservado e no qual o estalajadeiro já dizia estar acesa a brasa na fornalha, que me aqueceria a madrugada, Gonçalo de Domas disse-me, com ar fatigado, que a noite lhe havia sido muito prazerosa. Desejou-me boa viagem e recomendou-me cuidado nas tortuosas veredas do Urbião, pois Don Beldur, o sulfuroso, carregara consigo muitas almas naquelas paragens, entre as duas águas boas. Era como se referia ao diabo e ao Urbião, em seu idioma basco, para logo acrescentar:

– A montanha engana não só os sentidos, caro trovador – disse antes de recolher-se.

Disse-me que ficou encantado com minha voz, virtuosidade e versos, mas, a bem da verdade, não acreditava que eu fosse quem dizia ser. Por essa razão, não me perguntara como minha vida nos salões da Corte se transformara na de um miserável peregrino, um trovador arruinado, andrajoso e pedinchão. Mas ressaltou:

– Caro menestrel, minha condição humilde não pode exigir a visita de gente palaciana, todavia nunca tive uma companhia tão prazerosa nesse friorento outono, de sorte que o seu passado em nada me interessa. O que me importa é ter escutado a musicalidade de seus versos e o aveludado de sua voz, que me parece lhe ter chegado por dádiva divina. Louvo seu canto, louvo seus versos, Juan Ponce! Louvo sua alma benfazeja, caro trovador! Acreditemos em nossas histórias! É o que nos resta: contá-las até esperar a chegada das trevas da noite, a incerteza da madrugada ou a luz da aurora.

Levantando a caneca pela última vez, ainda mais alta que sua calva, brindou em favor de um bom sono e de minha caminhada pelas veredas do Urbião. E se foi para os aposentos num andar entre tateante e trôpego, com o castiçal na mão, no qual um toco de vela já dava sinais de última chama.

                                                                                                  ***

Aos primeiros raios do alvorecer, continuei minha caminhada em direção ao topo do monte. O clima amenizara, o vento amainara suas forças e o frio não mais me enrijecia os músculos. Caminhei por horas, embalado pelas cantigas entoadas na noite anterior, acompanhadas pela roçar do vento nas folhas que revoavam de álamos, salgueiros, choupos, olmos e pinheiros silvestres. Ouviam-se os cantos de tordos, pintassilgos e carriças, bem como o marulhar dos regatos que desciam ligeiro o Urbião e que formariam o Douro em sua longa caminhada até o mar lusitano.

Pensei em como pude ser feliz ao longo desses anos de viajante; em como pude olhar o

mundo de forma diferente. O fato de não estar subjugado a nenhum senhor dera-me a liberdade de buscar a felicidade dia após dia. Os lábios dos quais haveria de manar a música até o fim de minha existência testemunhavam-no. Se não fui feliz, o destino enganou-me e burlava de mim.

Ao apertar o passo, subindo por uma encosta íngreme e pedregosa, encontrei uma ermida construída nas cercanias de uma caverna, na qual poderia ter vivido San Millán, o asceta, que distribuiu os bens de sua igreja entre os pobres e morreu centenário no último quarto do século VI. Uma cascata brotava entre as gretas de um bloco granítico que lembrava as escadas de um palácio ou de um templo. Um veio vaporoso despencava em duas quedas num improvável zigue-zague. Subi, ao largo da cachoeira, por um caminho de seixos. O teixo milenar que buscava haveria de estar logo acima, no pico mais alto do Urbião. Escalei as gretas íngremes, galgando pedra por pedra, até um altiplano revestido por espesso prado, que circundava a Lagoa Negra, a cujas margens, imponente e solitário, um teixo negro, de dois milênios, pelo menos, pendia sua frondosa ramagem.

A história contada por Gonçalo de Domas era verossimilhante, à exceção de um único fato: o manuscrito de Averróis não se perdera; haveria de estar ali, bem à minha frente. O teixo media cerca de trinta metros. Com algum esforço, oito, ou talvez nove homens, não menos, poderiam abraçar-lhe o caule completamente. Descansei à sua sombra. Retirei a flauta do surrão e toquei as melodias mais belas que conhecia. Os frutos venenosos do teixo pendiam naquele início de outono. Um a um, começaram a cair. Os tordos se calaram, os regatos cessaram o marulhar, as folhas das faias sopitaram o contínuo ciciar, o vento dissipou o assovio frugal, e não se ouvia mais nenhum farfalhar das copas das árvores. Depois dos últimos acordes, fez-se silêncio. Tateei, no tronco da conífera, entre os nós retorcidos, uma fenda que se abrira. Com as pontas dos dedos, retirei um papel rude, provavelmente da primeira fábrica árabe de meados do século XII, feito de cânhamos de Samarcanda. Inexplicavelmente, o papel se havia conservado. Abri-o com cuidado e examinei cada linha do manuscrito. Aprendi a língua e cultura árabes e acreditava que, indubitavelmente, todos os signos do texto dos copistas de Averróis poderiam ser interpretados. Uma clave, porém, se me apresentava incompreensível, razão por que malograva na decifração.

Tudo da história resumida por Gonçalo de Domas estava ali, descrita com apurado lirismo. A lenda ganhava cores fortes e cromatismos musicais, à medida que se narrava todo o martírio do trovador e a redenção de seu algoz, assim como a melodia que quebrara o silêncio do reino: uma música primigênia, jamais tocada, que dera ao verdugo a imortalidade da alma, ou a aptidão para tanto, algo que o velho basco desconhecia. Tornei a dedilhar as cordas da viola, na tentativa de tocar a melodia primigênia. A cifra ininteligível lembrava o serpentear da cascata ao largo da qual subi os últimos rochedos até o cimo do Urbião. Durante horas, sentado à sombra do teixo, tentei debalde encontrar o significado daquele símbolo. Por um momento, imaginei que talvez fosse a nota de uma melodia celtibérica, que se perdera e que eu ignorava, transcrita pelos calígrafos de Córdova, mas sem qualquer transliteração. O sol viajou todo o arco da abóbada celeste num piscar de olhos. As

horas haviam-me escapado como a réstia de lembranças da primeira infância. O silêncio da montanha invadiu a cratera onde se adensara há milênios a Lagoa Negra. Era inútil alcançar a decifração: a quietude trouxe a ilusão de um mundo sem tempo, sem luz, sem frio nem calor, sem lembranças. O ocaso deu lugar à noite e miríades de estrelas já cintilavam no céu. O torpor não me incomodava. A alma gozava um estado indefinível. Os frutos vermelhos do teixo se dissolveram numa torrente, que me carregou o corpo para o fundo da lagoa. Mas já não havia lagoa, senão a imensa cratera de um vulcão extinto, que precipitava minha queda para as entranhas da Terra. Uma força telúrica, amalgamada ao torpor, rodopiava-me entre as raízes do teixo, cada vez mais fundo, mais e mais e mais. Vi árvores silvestres despencando para o nada, riachos, pássaros precipitando-se para o centro da Terra. A pedra em que fora talhada o número da estalagem rolava entre os pedregulhos e seixos das cascatas; uma lua em quarto crescente, uma estrela cadente, os surrões atados pelas cordas da viola, o corpo de Gonçalo de Domas e sua imensa calva, tudo declinava, absorvido por uma força inumana. As raízes se transformaram em arabescos, e estes, em abafadas notas musicais, plasmadas, que saltavam do papel de Samarcanda, como os sons de cetáceos ouvidos no fundo do oceano, ou o canto das sereias, relatado pelos náufragos que sobreviveram no barco de Odisseu. Por fim, a melodia cessou por completo e meu corpo viveu a plenitude do silêncio.

***

“…Acordei com o roçar das chaves nas grades de ferro e a tonitruante voz do carcereiro. Abriram a cela e me trouxeram a flauta, a viola, a rabeca e o alaúde. Toquei pela última vez. O carcereiro olhou-me compassivamente. Enquanto tocava, um pássaro canoro veio às grades da janela. Ofereci-lhe as migalhas de pão que sempre guardo da ceia anterior. A pequenina carriça, diferentemente do canto vivaz e nervoso com que me sobressalta de vez em quando, respondeu-me com um trinar doce, como a despedir-se de mim. Mantive meu silêncio, como me fora imposto, mas tenho certeza de que ela sabia que, com minha quietude, estava a me despedir dela.

Confiscaram-me as terras, quase todos os haveres, prenderam-me e, em poucos minutos, me arrancarão a vida na corda de uma forca. Um outro desejo me foi concedido: escrever-lhe esta última carta.

Nada lhe poderei deixar, além desses instrumentos e dos arabescos dessa história pouco comum e sem desenlace: uma melodia inefável que jamais comporei. Deixe esta carta entre as fendas do teixo milenar, às margens da Lagoa Negra, no Urbião. Leve consigo a rabeca, a flauta, a viola e o alaúde. Alguém, um dia, encontrará essas linhas nesse rude papel de Samarcanda. Quiçá tente buscar essa melodia perdida, se é que ela existe. Quem sabe alcance sua decifração. Oxalá ao menos se interesse por minha história.

Pouco tempo me resta. Um padre veio rezar em favor de minh’alma, plena de inquietudes.

Rogou a Santa Maria que me guardasse e que Deus tivesse piedade de mim. Amen.

Morrerei no equinócio de 1521, a não ser que Sua Majestade me conceda clemência, em atenção ao meu último apelo à Corte.

Apesar do tom fatídico de minha carta, faz um belo dia.

Adeus, Juan Ponce. Ou deveria escrever ‘até logo’?

Com essa história, deixo a vossa mercê o melhor de meus versos:

Longe se ponha o sol…”